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Entre o real e o fantástico: uma jornada pelo mundo drag

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Gabriella Borges, Isadora Setubal, Lívia Guedes e Mariana Sato (3º semestre de Jornalismo)*

*Trabalho realizado para a disciplina de Grande Reportagem, sob orientação do professor Antonio Rocha Filho

Capítulo 1: Espartilho

Em que momento paramos de enxergar a magia no mundo ao nosso redor? Você se lembra do instante exato em que percebeu que o Papai Noel não existia de verdade? Por que paramos de torcer para que o Peter Pan viesse e nos levasse para a Terra do Nunca? Quando você parou de esperar pelo fantástico? É neste contexto de perda de magia que o drag surgiu como forma de ressignificar a realidade e mostrar que ela é melhor com um pouco de brilho.

A arte do drag é um manifesto, uma forma de usar a sua voz e lutar pelo extraordinário, por essa magia que, cada vez mais, ameaça desaparecer. Mas, neste caso, quanto maior o brilho, maior a sombra também. Assim, é nessa escuridão que se escondem as pessoas que não conseguem perceber a beleza dessa arte sem tocá-la, sem mudar o seu sentido e a sua conotação. No Brasil dos dias de hoje, o mundo drag luta contra a necessidade egoísta do outro, que diminui essa arte ao tentar provar que o mundo só faz sentido se for explicado racionalmente.

“Algumas vezes montada, já fui assediada sim, principalmente por homens. Eu sou uma artista, você não pode tocar no meu corpo. É muito sutil aquela forma de vir falar e encostar em uma parte que não é para ser encostada, ou falar alguma coisa que não é para ser dita. Da mesma forma que você não vai ao teatro e no meio da apresentação encosta no corpo do ator, você não pode encostar no meu sem a minha permissão, sem a minha autorização.”

Essa é Ruby Wild, uma baby drag (termo usado para se referir a drags com pouco tempo de experiência no ramo) de apenas seis meses que, apesar de sua pouca idade, já vivenciou na pele o preconceito direcionado ao mundo drag. A artista de 24 anos é de Ribeirão Preto e é reconhecida por sempre usar uma peruca ruiva e ondulada que vai até a altura de seu peito. Seus olhos grandes e castanhos lembram os de uma boneca dos anos 90 e suas roupas são escolhidas para se conectar com seu nome que representa a junção da selvageria existente em sua feminilidade.

Registro da apresentação de Ruby no evento Rebobinights – Foto: Philip Falzer

Em momentos sombrios de preconceito e assédio, Ruby encontra força em seu nome e o usa como um lembrete do que realmente importa: que fazer drag é a sua paixão. Entretanto, mesmo lutando para manter a positividade, sempre irá existir o outro lado da moeda. No caso do preconceito, não tem como prever como, quando e onde ele irá se manifestar e, muito menos, as consequências e danos que ele irá deixar em seu rastro.

Para a drag queen Every, a discriminação fez com que a sua arte fosse submetida a um patamar que ela nunca pediu para fazer parte: “Já chegaram a perguntar para minha mãe se o que eu fazia era prostituição. Então, para a sociedade, colocar uma lingerie e uma peruca na cabeça era uma forma de eu estar me prostituindo. De eu estar sendo conotada para essa posição. Está tudo bem você se prostituir. Cada um conhece as condições e o que precisa fazer para entrar o aqué [gíria usada pela comunidade LGBTQIAPN+ que significa dinheiro].  Mas não era esse o meu trabalho.”

Para Every, que é filho de uma cabeleireira e de um cantor, o problema não é ser comparado a uma prostituta, mas sim ver que pessoas intolerantes usam a profissão com conotação pejorativa para atingir e criticar a sua arte, o seu dom artístico enquanto drag. Assim, em uma tentativa de combater e enfrentar o preconceito, Every faz uso de suas próprias armas, como um soldado indo para a guerra. Ela usa e abusa de trajes sensuais, unhas postiças, peruca colorida e maquiagem chamativa, para reconquistar sua liberdade criativa e de expressão das amarras impostas pela sociedade.

Look de Every para gravar um vídeo para o TNT Drag no Youtube – Foto: Murilo Garavelo

No entanto, a jornada pela aceitação é um caminho longo e tortuoso, onde é quase impossível chegar ao seu destino sem portar algumas cicatrizes de batalha. Ao vestir suas armaduras coloridas e brilhantes para se protegerem da intolerância causada pela falta de informação, as drags se deparam com um novo tipo de preconceito, com um novo tipo de dor: serem vistas apenas como algo exótico que diverte e desperta curiosidade, mas que não é respeitado.

“As pessoas fora da comunidade precisam entender que somos artistas estranhos, mas que também somos artistas como qualquer outro e que tudo bem ser diferente. Tem os kings, tem as drags, tem a galera que performa batendo cabelo, que performa mais teatral e que, em suas diferentes formas de ser drag, consegue mostrar essa estranheza para o público, mas também nessa estranheza mostrar que somos normais.”

Esse relato é da drag queen e palhaça de luxo Cilindra, que se montou pela primeira vez em 2016, quando tinha 17 anos. No início, abusava do preto nos olhos e do batom escuro na boca, mas com o passar do tempo, sua estética gótica deixou de se encaixar com a simpatia de Cilindra. Ela nunca foi uma drag da moda: o que tem ela veste. Gosta de improvisar seus visuais com as roupas que tem em casa, mas busca dar preferência a vestidos com brilhos. É conhecida por ser uma mistura da Úrsula, do filme A Pequena Sereia, com a cantora Elza Soares.

Registro de Cilindra em uma sessão de fotos – Foto: Arquivo Pessoal

A palhaça de luxo acredita que toda drag é livre para ocupar qualquer lugar, principalmente aqueles mais inusitados. Ela relembra sua primeira experiência como contadora de histórias para crianças enquanto estava montada. Naquele momento, um mundo surgiu além daquele em que drags podem apenas bater cabelo e fazer apresentações noturnas em boates. Cilindra descobriu um novo sonho, uma nova forma de usar a sua drag para alcançar diferentes lugares.

Entretanto, essa sensação só pode ser descrita como agridoce, quando pensa que essa revelação podia ter acontecido antes. Para outras queens, a pressão social, que manipula a cultura drag como marionetes em um show, reforça o equívoco de que a drag só pode ocupar um lugar e que deve sempre se portar de determinada maneira. O preconceito sufoca o artista tal qual um espartilho aperta suas costelas. No cenário atual, pode parecer que essa arte nunca será valorizada ou encontrará o prestígio que merece, mas, até mesmo Leonardo da Vinci demorou para ser reconhecido pela grandiosidade de suas obras.

Capítulo 2: Manequim

 Para desmistificar qualquer forma de arte, antes é necessário conhecer a sua história. Assim, desde seu surgimento em 1870, o termo drag sempre teve as suas raízes no dramático, uma vez que teve início nos palcos teatrais como uma referência ao arrastar dos longos trajes femininos usados pelos atores. No teatro shakespeariano, drag é uma sigla para dress as a girl, em tradução literal, vestir-se como uma garota. Naquela época, mulheres eram proibidas de se apresentar nos palcos, logo, restava aos homens interpretar todos os papéis femininos. Mas, ao contrário do que é vivenciado atualmente, estes atores viviam no mais alto prestígio, sendo respeitados por sua arte. Foi apenas em 1950, que a palavra queen foi adicionada à gíria, formando assim o termo que conhecemos por drag queens.

Com o decorrer dos anos, algo que antes era visto apenas como uma arte clássica, foi ressignificado pela influência da comunidade LGBTQIAPN +, que tornou essa arte mais popular, mas também mais suscetível a críticas. Os efeitos dessa relação se perpetuam de diferentes maneiras, uma delas sendo a propagação de falsos estereótipos sobre quem faz drag queen, incluindo especulações acerca de sua identidade de gênero e orientação sexual.

“Eu achava que eu queria ser mulher, que eu nasci no corpo errado. A gente sabe que existem as travestis que realmente vivenciam isso, mas não era o meu caso. Eu sou um menino gay, um homem cis. Gosto de ser um homem cis, gosto de ser um homem gay. Então, não, não sou travesti. Eu estava direitinho no corpo certo e eu só precisava descobrir o que era aquilo, e eu descobri que era apenas uma expressão artística de mim. A minha maior luta foi porque eu não entendi o que era. Eu achei que pudesse ser minha essência, que eu pudesse querer ser uma mulher, mas a drag vai muito além da nossa sexualidade.”

Esse relato é de Paulete Brasília. Ela foi uma criança que sempre ansiava por arte, e uma das coisas que mais gostava de fazer era se fantasiar, usando e abusando do guarda-roupa de suas tias e primas. Agora adulta e formada em Publicidade, ela continua mesclando elementos diferentes, fazendo com que seu visual não siga padrões. Nenhuma montagem que Paulete faz é igual a anterior. Em sua produção, é indispensável o uso de longas unhas postiças e lentes coloridas. Da Bruxa do 71 até uma cartomante misteriosa, a sua sobrancelha sutil contrasta com os seus volumosos cílios postiços que vão até a testa.

Registro de Paulete Brasília vestida de Bruxa do 71 em seu Instagram – Foto: Arquivo Pessoal

Registro de Paulete Brasília vestida de cartomante em seu Instagram – Foto: Victor Diniz

Hoje, aos 46 anos, sendo que 16 foram vividos fazendo drag, Paulete Brasília percebe o impacto que o preconceito estrutural teve em sua jornada de autodescoberta e aceitação:

“Quando eu era criança e eu me fantasiava, usava as coisas das minhas tias, das primas. Eu sentia medo, eu sentia que eu estava fazendo uma coisa errada e que ninguém podia saber. Eu sentia tudo isso, mas eu nunca senti culpa, porque a sociedade achava aquilo errado, mas eu não.”

O estigma associado a comunidade drag ocorre porque a sociedade não compreende a complexidade dessa performance e tenta inseri-la em rótulos pré-existentes, assim confundindo a essência da drag com a do artista que lhe dá vida. Um dos estereótipos mais comuns sobre as drag queens é achar que elas são compostas exclusivamente por homens gays, mas um dos objetivos da drag Ruby Wild é combater esse equívoco:

“Drag é para todo mundo. Então, assim como o teatro, a dança e a música, o drag não está restrito a um tipo de gênero e identidade. Você pode ter drags que são mulheres, que são não-binários e que não são da comunidade LGBT.”

Ao enxergar por novas lentes a comunidade drag, portas são abertas para espaços inusitados e para que essa profissão tenha o respeito que tanto merece. A artista Malvadezza, 23, criou sua drag em um navio de turismo chamado Harmonia, enquanto trabalhava como marinheiro. Foi em um quarto pequeno com paredes brancas e que era compartilhado com um estrangeiro, que não entendia uma palavra que Malvadezza dizia, que ela se apaixonou pelo mundo drag. No fim do dia, após o trabalho, a queen se trancava em seu banheiro para se maquiar e, muitas vezes, ficava tão imersa nesse universo, que perdia o sono.

Registro de Malvadezza em seu Instagram – Foto: Arquivo Pessoal

Ao perceber o crescente interesse pela sua arte, Malvadezza dá um salto de fé e abre mão de um emprego fixo, para seguir seu sonho:

“É uma cultura que traz felicidade, gera emprego, afeto e empoderamento. Gera reconhecimento e faz as pessoas que estão me assistindo felizes. Dá a possibilidade para as pessoas mais novas se inspirarem.”

O desejo pela felicidade é universal e a arte drag é apenas um dos caminhos para chegar neste destino. Mas antes, é necessário abandonar seus pré-julgamentos, assim como um manequim é despido de seus trajes. Ao desmistificar a arte da cultura drag, as pessoas ficam nuas de seus preconceitos.

Capítulo 3: Croqui

Atenção, senhoras e senhores, meninos e meninas. Estamos começando mais um espetáculo em nosso circo. Se preparem para a atração mais desejada: a nossa incrível palhaça, Cilindra!

Foi na Doutores da Alegria, uma instituição que leva a magia circense para hospitais públicos, que Cilindra estudou para ser palhaça profissional. O espaço fica localizado em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, que, no meio dessa selva de concreto, chama a atenção com suas paredes azuis e porta vermelha vibrante. Por mais que seja um espaço corporativo, tem brincadeiras por todo lado.

Cilindra se preparando para uma apresentação na instituição Doutores da Alegria – Foto: Reprodução

E foi em meio a narizes vermelhos e macacões de bolinhas que a paixão de Cilindra pela arte drag surgiu. Desde então, a queen e a palhaça que existem dentro dela se tornaram uma só:

“Eu levo a minha pesquisa de drag como se [ela] fosse a minha palhaça de luxo. Estudando a figura do palhaço, a gente entende que todo mundo tem um palhaço dentro de si. Só que alguns trabalham mais essa figura.”

Porém, assim como um palhaço vai muito além de risadas e brincadeiras, uma drag queen é mais que glitter e salto alto. É considerando essa imensidão de significados que, independentemente de ser uma palhaça de luxo, Cilindra usa dessa figura para explicar o que é ser drag para quem nunca esteve em contato com essa arte:

“O palhaço não tem um trabalho dele? Tem. Ele fica de palhaço o dia inteiro? Não. Ele fica de palhaço na hora do espetáculo, do show. Eu sou uma artista, eu me monto para trabalhar. Vou, faço meu show, acabo a minha performance, vou para o chuveiro, desmonto tudo e volto. A drag nada mais é do que uma palhaça de luxo. Eu coloco minha drag nesse lugar, porque [sozinha] ela é uma figura muito distante da realidade de algumas pessoas.”

A arte é uma força onipresente, está em tudo e em todos. Desde a forma que você escolhe se vestir e cortar o cabelo, até a maneira que você se expressa para o mundo. Assim, fazer drag é só mais uma forma de arte, a mesma arte que habita em mim, na Cilindra e em você:

“Eu acho que drag, simplificando, é um modo de se expressar através da arte. Ponto. Aí, através da arte no quê? No figurino, através da maquiagem, através do cabelo. É um crescimento muito grande a gente se ver de outra forma.”

E de maneira simples, é na coragem que a arte drag posiciona seu pilar. Quem não gosta de sair de casa confiante, sentindo que o mundo ainda tem muito a oferecer e que você ainda pode viver a sua melhor versão? A coragem é um dos sentimentos que vêm junto com a arte drag, que busca se conectar com seus desejos e, especialmente, fazer as fantasias se tornarem realidade.

Tal como um croqui, o ser humano é apenas um esboço simples com traços imperfeitos, esperando o impulso final para conseguir exteriorizar para o mundo o verdadeiro eu. Desta forma, o drag surge como tecidos costurados pelo melhor artesão e, com toda magia que o envolve, veste seu usuário de coragem, tenacidade e resiliência.

Capítulo 4: Aquarela

Podemos passar diversas páginas tentando explicar o que é o drag, mas, no final do dia, é algo que só quem vivencia, sabe. De uma forma lúdica, o drag é uma mistura de arte e sentimento. É juntar todas as referências e as lembranças que fazem você ser você, e transformá-las em um combustível que move o espetáculo e que cativa e emociona as pessoas.

A drag queen Every cresceu sem saber quem era de verdade. Quando criança, não era muito confiante e, por conta disso, não conseguia se expressar da forma como realmente gostaria. Ao invés de receber o carinho e acolhimento que são, geralmente, direcionados aos jovens, Every foi subjugada e incompreendida por muitos à sua volta. A causa disso? Sua orientação sexual e seu jeito de ser. Então, como uma concha, Every se fechou dentro de si, onde era seguro, para que pudesse agradar os outros à sua volta em uma tentativa de viver seus dias sem sofrer mais preconceito. Mas, em meio a essa tempestade, a arte drag surgiu como calmaria.

“Ser drag para mim é uma forma de expressar tudo que eu sinto de ruim, tudo que eu já vivi, tudo que eu já passei e todas as coisas que eu já tive vontade de fazer. Eu pego esses aspectos e me expresso através da Every e parece que tudo é possível. O mundo fica palpável, parece que eu vivo em outra realidade sendo a Every.”

Mas, cada artista tem sua história e enxerga a arte drag de uma maneira. Para a queen Athena, esta arte foi o que deu vida ao seu sonho de criança. Desde muito nova, ela sabia o caminho profissional que queria seguir: ser professora e trabalhar com teatro. Hoje, com 29 anos, alcançou ambos os objetivos, mas, nunca pensou que um deles viria acompanhado de uma peruca, glitter e salto alto:

“Encontrar a forma de viver da arte foi o meu sonho durante a minha vida inteira. Foi a ferramenta que eu encontrei para fazer o que todo mundo falava que eu não ia conseguir. Quando você cresce uma pessoa não padrão, que não é branca dos olhos claros, gay e afeminada, você está ciente de que não vai ser o galã da Malhação. Então, descobri na drag a forma de ser quem eu queria.”

Athena Leto caracterizada de Janine Stifler, personagem de American Pie – Foto: Reprodução Instagram

O ato de se expressar é diferente para cada pessoa. Assim como uma aquarela em uma folha branca, você pode misturar quantas cores quiser e formar aquilo que deseja. Ela te permite desenhar, pintar, fazer novas combinações, mas, principalmente, explorar aquilo que já existe dentro de cada um. Ser drag queen instiga sentimentos diferentes em cada pessoa e, como uma aquarela, a arte drag permite a expressão de sua alma na forma mais pura, genuína e colorida.

Capítulo 5: Peruca

Muito se fala sobre como a arte drag se expressa, mas esquecemos de considerar a forma, a dedicação e o planejamento que são exigidos para colocá-la em prática. O fato de sua natureza ser fluida, brilhante e alegre, não reduz a perspicácia demandada na hora de criar e comunicar a sua drag para o mundo. Esse processo de criação da drag pode se manifestar de duas maneiras: ora como um personagem, ora sendo uma extensão da pessoa em forma de arte.

De um lado da moeda, a drag como um alter ego é similar ao processo de um ator interpretando um papel e, para a queen Every, é exatamente isso: “A Every é uma construção de um personagem dentro de mim, [ela] é só a casca ali para a ocasião. É por isso que eu falo que é um personagem, porque quando a gente entra no palco, a Every que vai estar personificando. Mas vai ser eu tomando todas as decisões prévias, fechando os contratos e recebendo o pagamento”.

Assim, similar a um autor que cria um personagem literário, o artista que dá vida a Every queria que ela fosse aquela pessoa com uma aura magnética que se você encontra na rua, é impossível não olhar duas vezes. Grande parte disso se dá pelo seu estilo versátil que vai desde visuais góticos com muito sangue falso a uma estética que mistura as cores de David Bowie com o glamour de Marilyn Monroe. Every é conhecida por ter uma presença forte e inigualável, decidida e muito detalhista em cada parte de sua produção. Mas, curiosamente, o lugar em que se sente mais confortável não é nos palcos e sim em sua casa, onde é livre para se expressar como é: dançando, cantando e cuidando de si.

Registro de Every no evento Rebobinights – Foto: Diego Feroni

Entretanto, mesmo tendo muitos artistas que enxergam a sua queen como um personagem, essa dualidade é muito mais complexa que isso, e faz com que outras drags tenham uma visão que diverge da de Every. Isso se dá pelo fato de que o drag é uma arte e é muito difícil para alguns artistas distinguirem a sua obra de si mesmo. Ao colocar a peruca, algo muda, a chave vira. Você ainda é você, mas o reflexo no espelho que te encara de volta é diferente. É uma forma de expansão: um mesmo corpo, mas enfeitado com outros acessórios.

Esse é o caso de Athena, que precisou buscar na terapia respostas para esse dilema, pois se via completa enquanto drag, mas enfrentava problemas de autoestima enquanto artista e pessoa: “Demorou até eu entender que a Athena sou eu de peruca, que somos a mesma coisa. [Ela] sou eu mais produzida e eu não produzida continuo sendo [Athena]. É da mesma forma que todos nós nos montamos para ir a um evento importante: eu me monto para fazer palhaçada”.

Compreender enquanto artista qual é o limite entre o seu eu e a sua drag pode ser um dos aspectos mais desafiadores dessa arte, mas também um dos mais recompensadores. Ao ver sua drag como uma extensão do seu eu, o artista descobre que é possível manifestar partes de sua personalidade que estavam antes escondidas. Quando a sua arte é reconhecida pelo público, ele entende que a sua pessoa também é digna de celebração.

Na arte drag, a peruca é uma coroa, uma moldura que completa a obra e, com ela, as possibilidades são infinitas. Quando uma queen coloca uma peruca, ela não está apenas escolhendo o cabelo que vai usar. Entre ondas e cachos, há um manifesto em que você escolhe quem quer ser naquela noite e como o seu personagem será percebido. Assim, a relação entre o eu e sua drag é como uma peruca que é capaz de criar uma nova identidade, permitindo que o artista se reinvente a cada performance. Mas, ao mesmo tempo, é um símbolo de autoconfiança e autenticidade.

Capítulo 6: Penteadeira

Tato, olfato, paladar, visão e audição são os cinco sentidos do corpo humano que aprendemos desde criança. Paralelamente, a arte drag pode ser considerada um sexto sentido, pois manifesta todos os outros de uma forma única e lúdica. Assim, aqui será mostrada uma faceta do drag que apenas as queens conhecem e, como para algumas, três desses cinco sentidos se sobressaem e afloram quando estão montadas.

É por meio da visão que percebemos o mundo ao nosso redor e tudo aquilo que o constitui. Mas este sentido vai muito além disso: os olhos permitem que os outros nos conheçam sem que precisemos falar algo. Eles são um mar de ressaca, força e resistência, são faróis que guiam o caminho. Para a drag queen, Ruby, ser vista inclui abusar das cores e da textura de suas perucas, mas isso vai muito além de autoexpressão, sendo uma maneira de se conectar com a sua mãe:

“Quando eu me montei pela primeira vez, apesar de não estar completamente Ruby, me veio muito a imagem da minha mãe, uma semelhança física com ela, até mesmo pela peruca que era cacheada. Isso foi bem emocionante para mim, porque eu senti uma força ao olhar para o espelho e lembrar da minha mãe. Ver isso fisicamente foi bem especial.”

Mas, ao se olhar no espelho, os elementos que a drag escolhe para a sua montagem vão além da questão estética, sendo também uma forma de se sentir mais confiante em sua própria pele. Para Ruby, seu reflexo só está completo se ela esconde suas sobrancelhas e brinca com novos formatos:

“Eu gosto muito de esconder minha sobrancelha e de usar a minha peruca. Isso me faz sentir muito drag, eu preciso ter esses elementos para me sentir mais Ruby. Me vem uma sensação de poder, no sentido de, agora, eu posso fazer tudo o que eu quiser.” No drag, a visão vai além do enxergar, é mais do que a forma com que a queen é vista pelo outro. É, também, as emoções que causa nas pessoas quando ela está no palco e se sente segura e poderosa com si própria, com o seu reflexo.

Já o olfato é um sentido invisível que nos desperta sensações que a visão não consegue. Todo mundo tem um cheiro específico e com as drags, não é diferente, principalmente para a queen Athena. Por ser uma drag performática, seus visuais são vislumbres de seu gosto pessoal, uma vez que é conhecida por suas releituras de personagens famosos. De Alice no País das Maravilhas a Regan de O Exorcista, tem uma coisa que não muda em Athena, independentemente de como está caracterizada: o seu cheiro.

Athena caracterizada de Regan, de O Exorcista – Foto: Athena Leto

Athena como Garta Lagarta de Alice no seu pequeno grande quarto das maravilhas – Foto: Grupo Arte Simples de Teatro

Quem encontra Athena na rua, primeiro sente o seu cheiro, o seu perfume. Até onde consegue se lembrar, a drag sempre usou esse mesmo perfume do Boticário que é familiar por suas notas de morango. O cheiro é delicioso, doce e um pouco cítrico. Parece algo comestível: um chantilly, uma baunilha com morango. Se um dia Athena trocar o seu perfume, ainda assim o seu cheiro continuaria sendo doce. Para a queen, o seu perfume é mais do que um cheiro, é um acessório. Ele completa qualquer visual, do mais mágico até o mais grotesco.

Mas o tato é um dos sentidos mais completos e poderosos, tendo a capacidade de nos transportar para outra realidade, para fora de nossa pele e, na arte, nem sempre precisamos do toque para sentir. Ao se apresentarem, as drags vivenciam na pele o calor dos holofotes, o suor da dança e a melodia das músicas dita seus movimentos no palco. Cada gesto desperta sensações, seja no artista, seja no público. Para a queen Every, o tato é uma sensação tão poderosa que chega a inebriar a sua mente e cada batida do som toma conta de seus movimentos. No palco, ela não tem controle de seu próprio corpo.

“Quando eu estou no palco parece que tudo flutua. Eu não consigo pensar em nada além do meu movimento corporal. Parece que só o meu corpo funciona, a minha alma fica lá dentro e não faz nada, o meu corpo se mexe sozinho. Parece que tudo levita, parece que não é real”.

Na penteadeira, os pincéis são a confiança, a sombra é o humor e o brilho… bem, o brilho é o brilho. Juntos, eles pintam o começo de uma apresentação que, em cima do palco, se mescla com a melodia da música, os gritos do público e o arco-íris de luzes, criando uma realidade sinestésica para os espectadores e para a própria drag.

Capítulo 7: Ateliê

Do que é feita uma casa? Em seu sentido mais literal, ela é formada por tijolos, madeira, blocos de concreto e cimento. O seu alicerce é construído com materiais resistentes que sustentam a sua estrutura, mas também, todas as memórias que vivem ali. Os tijolos formam as paredes e os cômodos, enquanto o cimento é responsável por unir tudo, garantindo que nada saia de seu respectivo lugar. Mas uma casa não é um lar se ela está vazia de pessoas e de arte.

É neste cenário que surgiu a Casa Fluida, um casarão histórico da década de 1960 que funciona como bar, restaurante e ateliê. Cada lugar da Casa está preso em sua própria época, em seu próprio estilo. Nada é igual, mas nada é completamente diferente também. Tem um elo invisível que faz esse ambiente caricato funcionar. A Casa tem cheiros e parece estar viva. Tem fumaça no ar, suor e um aroma doce das bebidas e das sobremesas. O espaço também é palco para apresentações drag, sendo um refúgio para essa comunidade e para todos os entusiastas da arte na capital paulista.

Fachada da Casa Fluida, na região central de São Paulo – Foto: Reprodução Instagram

Ao entrar no salão principal, há um palco com uma bola de discoteca onde o show das drags acontece. No canto esquerdo, quase escondida, tem uma escada caracol que leva até o segundo andar onde fica um terraço com suas plantas coloridas e que, apesar de pequeno, aproxima os clientes dos funcionários. Há também o Ateliê, local que foi o motivador para a criação da Casa Fluida, visto que Fernando Spaziani, um dos sócios do empreendimento, é artista plástico e curador.

Ateliê de Fernando Spaziani localizado na Casa Fluida – Foto: Julia Montgomery

O sucesso da Casa não é por acaso. Ela foi idealizada nos mínimos detalhes pelo casal Matheus Nahas, 39, e Fernando Spaziani, 52, que sabiam desde o início que a região perfeita para tornar esse sonho realidade só podia ser a Augusta. O espaço é uma celebração da pluralidade e da fluidez, que não fica restrita só ao nome do local. Ela representa uma fluidez de comportamento, de pensamento e atitudes:

“A gente já vinha de um mercado pouco explorado, porque o universo, principalmente o universo gay, é muito restrito às baladas, às grandes boates, e foi o que sobrou depois que os bares praticamente deixaram de existir. Eu não vejo nenhum lugar aqui em São Paulo que você vá e que tenha uma diversidade tão grande de gente. É a bicha velha, a bicha novinha, a drag, a travesti, a sapatão, a trans, a lésbica, o hétero e casais jovens”, disse Fernando. Aqui, ele se refere a como a Casa Fluida é um local inclusivo, principalmente ao considerar à diminuição do número de bares voltados para o público LGBTQIAPN+ na região da Consolação, em São Paulo, quando comparado aos anos 1990 e 2000.

A Casa também tem o intuito de mostrar para o mundo que um pouco de glitter nunca matou ninguém, afinal, o drag é para quem quer se divertir. Assim, o estabelecimento busca deixar essa arte mais acessível, promovendo o Batismo Drag, uma transformação completa para aqueles que querem sentir na pele o que é ser uma queen: desde sobrancelhas arqueadas até a coragem de exteriorizar o seu verdadeiro eu sem nenhuma limitação.

“A gente ficou encantado com essa ideia da experiência drag, de quanto isso é libertador, quanto é interessante para as pessoas e que poderia ser uma maneira delas se expressarem de uma forma que elas nunca tinham feito antes”, diz Fernando Spaziani.

A ideia do casal se tornou realidade: Daiane Alexandra, 30, é bartender da Casa Fluída há dois anos e passou pelo batismo no dia do seu aniversário. Uma peruca loira, curta e com mechas rosa acompanhada de uma minissaia e um top, foi tudo o que bastou para ela se sentir a Penélope Charmosa. Mas, além da mudança exterior, há também a transformação da alma.

“Eu sempre quis me montar, eu queria colocar uma peruca, vestir um saltão, fazer uma maquiagem mais forte, porque eu não faço nada disso normalmente. O desejo era de conhecer a arte e de me sentir como uma nova pessoa, porque, querendo ou não, muda tudo. A drag residente te monta de costas, então quando você olha no espelho, você sente um poder, é uma coisa linda. Eu não me importava como eu me importo normalmente, me sentia uma super-heroína.”

Assim, ao juntar cultura e lazer, a forma com que as pessoas enxergam o drag muda. O público se sente mais confiante para consumir essa arte e, consequentemente, a queen se sente mais segura ao performar, entregando uma apresentação única para sua audiência.

Quando o show inicia, vermelho como sangue é a luz que ilumina o ambiente, uma cor que representa tanto o sangrar do nascimento quanto o de viver enfrentando a hostilidade do mundo. As paredes do salão ressoam com os acordes de Eu Sou A Maré Viva, da banda Fresno. A escada caracol de madeira range com o barulho dos saltos de Mahina Starlight, a drag residente da Casa.

Look usado por Mahina Starlight em sua apresentação na Casa Fluida – Foto: Mahina Starlight

Com um passo de cada vez, ela chega ao térreo e pares de olhos a esperam, brilhando como holofotes. O calor do espaço e das pessoas que abraçam a drag queen, e a preparam para mais uma performance. Seus passos delicados, porém, confiantes, fazem os seus dreads balançar enquanto ela se dirige até o palco em sua bota plataforma e roupa xadrez repleta de laços brancos. Ela dubla a música como se fosse sua e seus gestos acompanham a melodia como se ela fosse a maestra de uma sinfônica. Naquele momento, a Casa está viva.

Além do show que dá no palco, Mahina Starlight usa a Casa Fluida como o seu camarim. São 52,3 quilômetros que separam Mauá, cidade da Grande São Paulo onde a drag vive, da Casa, localizada no coração da capital paulista. De quarta a sábado, durante duas horas, seus dias são preenchidos com o balançar do ônibus e os espaços apertados no vagão do metrô. Apesar de usar com graça e autoridade os seus looks no palco, este trajeto diário é feito desmontada para sua segurança física. A Mahina que o mundo drag conhece surge dentro das paredes seguras da Casa, em seu camarim, onde pode se transformar e depois se desmontar ao final da noite.

Capítulo 8: Conversas de camarim

Quando imaginamos o mundo drag, é impossível não pensar no seu ambiente mais colorido: o camarim. É dentro dele que, entre plumas, brilhos e lantejoulas, o limiar entre o real e o fantástico sai de foco, pois é aqui que os personagens são criados e as drags se preparam para as suas apresentações. É através dessas cortinas que a história por trás da performance é compartilhada entre amantes de uma mesma arte. Para a queen Cilindra, o camarim representa uma escada no seu processo de transformação em que cada degrau a aproxima da obra final.

Interior do camarim da Casa Fluida – Foto: Reprodução Instagram

Tudo começa com um traço no nariz e, em seguida, vem a preparação de sua pele com uma base líquida de seu tom exato. A liquidez é combatida com as camadas de seu pó compacto: tudo para não derreter a maquiagem e fazê-la durar. Ela então desenha um arco que dará forma a sua sobrancelha que, para Cilindra, quanto mais inclinada melhor. Durante a montação drag, que consiste nesse processo de aplicação da roupa e da maquiagem, quando se olha no espelho, Cilindra não consegue evitar se sentir ora como um rato, ora como um monstro. Isso ocorre porque ela está construindo uma máscara em cima de seu rosto e é nesse momento que ela se sente mais artista.

Mas se desmontar também é uma delícia. É nos bastidores do camarim que o seu ritual acontece: ela se torna Cilindra e também deixa de ser a queen. Ser drag é ser livre, mas se desmontar também é uma forma de liberdade: a maquiagem e o enchimento não incomodam, mas quando Cilindra os retira, sua primeira sensação é a de alívio. Nada se compara a entrar no banheiro e ligar o chuveiro, é uma sensação de estar se afogando e encontrar ar, é um respiro. Você se sente livre na sua pintura, mas também quando se despe dela. É a liberdade de poder ir e vir, e de aproveitar todo o durante. Você se sente uma artista e isso faz tudo valer a pena.

Cada degrau da escada também marca uma memória e um passo mais próximo da ascensão no mundo drag. Para Cilindra, esse momento de virada ocorreu no final de 2021, durante o primeiro concurso em que participou, o SP Drag Acuenda. O evento tem a essência do teatro com a dramaticidade que só o espetáculo pode oferecer. Isso ocorreu em um momento de transição, em que Cilindra deixava que sua arte saísse das paredes de sua casa para colocá-la pela primeira vez para jogo. Só por estar rodeada de drags experientes que já tinham uma carreira consolidada, Cilindra já se sentia vitoriosa. Porém, ela não imaginava que também ocuparia o pódio de primeiro lugar.

Registro de Cilindra após ganhar o concurso SP Drag Acuenda – Foto: Arquivo Pessoal

Em sua mente, esse momento é brilhante, especial e está guardado em uma caixinha de sentimentos bons. Cilindra se lembra claramente da cena: de parar na frente do camarim, olhar no espelho e se enxergar pela primeira vez. Ela se sentia belíssima e de fato estava. Dos pés à cabeça, incluindo a maquiagem e o conceito. Ela tem orgulho daquilo que montou, daquilo que criou. Era a sensação de ter uma coisa sua e ela tinha a aprovação de uma plateia enorme.

Mas a ascensão no mundo drag não é marcada apenas pela aclamação do público, mas também pela satisfação pessoal de como você enxerga sentido em sua própria arte. Como obra do destino, a primeira vez que Athena se montou foi também quando tudo se alinhou. Era uma sala cheia de pessoas, com paredes brancas e iluminada pelo clarão da tarde. Foi nesse cenário que Athena tentou se maquiar seguindo as instruções de seu professor, mas sem sucesso. Ela se sentia horrorosa e via todos os seus defeitos sob uma nova luz.

Mas tudo mudou quando o quebra-cabeça se completou, quando as últimas peças se encaixaram: a peruca e a roupa. Foi nesse momento que os pontos de interrogação em sua cabeça se tornaram exclamações e tudo fez sentido. Dali em diante, seu amor pela arte drag só aumentou. A sensação era a de um coral de anjos cantando e celebrando a sua – finalmente – descoberta, quem ela queria ser como pessoa e como profissional. Ao relembrar sua história, Athena percebe que o ambiente educacional foi o seu primeiro palco: desde a interpretação de um personagem drag em sua graduação de teatro ao workshop que participou em 2014, sediado pelo Sesc Consolação, na região central de São Paulo. Desde então, as salas de aulas nunca deixaram a sua vida e a sua arte. Hoje, mesmo depois de nove anos, quando não está montada e trabalhando como drag, Athena é professora de inglês.

Entretanto, mesmo com tanto amor envolvido e uma melhora significativa na recepção do drag na sociedade, ainda há muito a ser feito. Um dos maiores empecilhos que perpetuam é o fato de o ser humano consumir constantemente arte na forma de música, teatro e nas relações interpessoais, mas ainda não perceber que as drag queens também são uma manifestação artística. Por isso, a jornada do drag é repleta de magia e desafios, mas, principalmente, da vontade de mostrar ao mundo a importância desta cultura e o valor da profissão.

A arte não é descartável, pois não há histórias sem ela. Em nossa jornada conhecemos uma palhaça de luxo, uma professora de inglês, um marinheiro, uma publicitária, um maquiador filho de uma cabeleireira, uma mulher que faz drag e adentramos as paredes da Casa Fluida, conhecendo a sua drag residente. Apesar de eles não terem nada em comum à primeira vista, todos compartilham a vontade de manter o sonho drag vivo e fazer do mundo um lugar melhor para artistas. Enquanto a sociedade não perceber isso e não valorizar a arte em sua totalidade, tudo vai ser cinza e sem graça. É preciso adicionar um glitter, um paetê.

Decoração do camarim da Casa Fluida – Foto: Reprodução Instagram
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