Periferias de São Paulo lideram ocorrências de enchentes no 156 e sofrem com falta de resposta do poder público
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Chuva forte durante a tarde no centro de São Paulo. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
Nicole Micheletti (3º semestre)
Irineide Maria de Andes, moradora do bairro Vila São José, em São Paulo, sente um arrepio toda vez que o céu escurece. A chuva, para ela, não é alívio, é ameaça. “É sempre a mesma história”, conta. A água sobe, os móveis boiam, a rotina se repete. De tantas enchentes vividas, ela aprendeu a deixar os documentos num ponto alto da casa, onde sabia que a água não alcançaria. Mas nem sempre dá tempo.
Em uma das enchentes mais fortes que enfrentou, Irineide estava estendendo roupas quando a chuva desabou de repente. A água subiu tão rápido que ela precisou se agarrar no varal. No dia seguinte, nada. Nem Defesa Civil, nem assistência. “A prefeitura nem apareceu”, lembra.
O que Irineide passou não é exceção. É rotina. Nos três primeiros meses de 2025, a Prefeitura de São Paulo recebeu centenas de chamados relacionados a alagamentos e drenagens por meio do serviço 156. Esse é o número da central de atendimento da Prefeitura de São Paulo para solicitações, reclamações e dúvidas sobre assuntos da cidade.
A base de dados com informações sobre as solicitações e os respectivos atendimentos, no entanto, mostra um cenário alarmante: mais de 70% das solicitações não foram atendidas, e quase 80% dos atendimentos foram considerados “péssimos” pelos próprios cidadãos. Regiões como Itaquera, Pirituba-Jaraguá, Santana-Tucuruvi e Sé lideram o número de chamados não resolvidos. Em comum, todas compartilham uma geografia marcada por ocupações irregulares, ausência de saneamento básico e baixa presença do poder público, sendo consideradas áreas periféricas.
De acordo com o relatório da prefeitura, enquanto bairros como Itaquera e M’Boi Mirim acumulam centenas de chamados com mais de 96% das respostas avaliadas como de “qualidade péssima”, bairros nobres como Vila Mariana, Moema, Pinheiros e Jardins também sofrem com a chuva, mas recebem atenção mais rápida e eficaz. Apesar de registrarem críticas, essas regiões têm menos ocorrências e infraestrutura mais preparada, o que impede que os efeitos da enchente durem mais que algumas horas. Em Itaquera, por exemplo, foram 376 chamados, contra apenas 106 em Vila Mariana.
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“Áreas ricas recebem respostas rápidas porque têm infraestrutura melhor, influência política e visibilidade na mídia. Já as regiões pobres, afastadas e desvalorizadas, são negligenciadas por falta de interesse do capital e racismo estrutural”, explica o geógrafo Maximiliano Engler, formado na Unesp (Universidade Estadual Paulista).
Um levantamento realizado pela Escola Politécnica da USP, sobre a urbanização da favela do Sapé, confirma que as políticas públicas de drenagem raramente incluem planos de adaptação climática, deixando comunidades vulneráveis expostas a enchentes. Uma omissão histórica que escancara a negligência institucional em relação às favelas.
Um problema histórico
As enchentes em São Paulo acompanham o próprio crescimento da cidade. Desde o início do século XX, os rios foram sendo canalizados, o solo impermeabilizado e o planejamento urbano orientado pelo crescimento econômico, e não pela preservação ambiental. O professor César Faria, formado em geografia na Unesp, diz que ao longo das décadas, a cidade expandiu-se sem uma política consistente de habitação, o que empurrou populações de baixa renda para áreas de maior risco, como margens de córregos, fundos de vale e regiões sem drenagem adequada.
A Pesquisa “O avanço da produção imobiliária sobre a ‘periferia’ da metrópole” da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo) aponta que, historicamente, o planejamento urbano paulistano sempre privilegiou os interesses do capital imobiliário em detrimento do equilíbrio ambiental. Já que começaram a verticalizar o centro da cidade e empurrar os pobres para a borda dela, nessas bordas se concentram córregos, rios canalizados ou áreas de várzea, especialmente: Itaquera, que é próxima ao córrego Jacu e áreas de várzea do rio Verde; Pirituba-Jaraguá, que possui vários córregos e áreas com relevo mais baixo; e Santana-Tucuruvi, que são cortados por córregos como o Cabuçu e afluentes do Tietê.
Essa borda, com a crise climática, se torna cada vez mais frágil. Como comentado em uma reportagem do El País intitulada “Volver a navegar en los ríos arrasados por la urbanización de São Paulo”, ao ignorar a geografia natural e subestimar os impactos da mudança do clima, São Paulo construiu um modelo urbano que repete o mesmo erro há mais de cem anos: lutar contra a água, em vez de conviver com ela. E além disso, não prestar a devida a atenção que deveria ser dada, já que por si só são áreas de risco.
A esse processo, soma-se um fenômeno silencioso: a gentrificação urbana. Engler fala um pouco sobre o fenômeno: “Trata-se da valorização de bairros populares, muitas vezes por meio de projetos de revitalização e investimento imobiliário, que encarecem o custo de vida e acabam por expulsar moradores antigos.” Segundo ele, essas famílias, ao perderem espaço nas áreas centrais, são obrigadas a se mudar para regiões periféricas desassistidas pelo poder público. “São nesses locais que as enchentes mais matam, mais destroem e menos recebem atenção”, explica.
Foi o que aconteceu com a família de Jamille Amarante. O alto custo de vida em outras regiões da cidade obrigou ela e sua mãe a se mudarem para uma área mais acessível e também mais vulnerável, uma periferia em Santo André. Ali, Jamille sofreu um dos episódios mais traumáticos de sua vida. Sozinha em casa com seus dois cachorros, ela viu a chuva transformar o lar recém-inaugurado em uma piscina gigante. Eram quase 19h de junho de 2020 quando, acreditando que seria apenas uma pancada rápida, e acabou subindo para o segundo andar para estudar. Já que tinha prova no dia seguinte. Ela não poderia imaginar que, algumas horas depois, sua casa estaria tomada pela enchente. Quando se deu conta, a água havia tomado todo o primeiro andar de sua casa. “Perdi tudo. Geladeira, fogão, roupas, documentos, até o colchão da minha mãe. Foi desesperador”, lembra.
O problema não é apenas ambiental, é social. De acordo com a reportagem “Bairros periféricos e de maioria negra são os mais afetados por desastres em São Paulo” da Carta Capital, os bairros mais afetados por desastres climáticos em São Paulo são justamente aqueles com maioria negra e de baixa renda.Os moradores dessa região acabam tendo que recorrer à boa vontade da população, como conta Jamille: “Quem nos ajudou foi a igreja. Eles limparam a rua junto com a gente, me ajudaram a limpar minha casa, nos deram roupa e comida. A prefeitura nem apareceu para limpar a rua.”
Engler explica o que pode ser feito para esse problema ser minimizado: “Para mudar esse cenário, é preciso mais do que piscinões. É necessário ouvir quem vive a enchente. Planejar a cidade para todos, garantir moradia digna, investir em microdrenagens, reflorestamento urbano e, sobretudo, descentralizar as decisões.”
Jamille sempre terá a memória daquela noite em que o silêncio foi rompido pelos gritos vindos das casas vizinhas. Sua rua amanheceu coberta de lama, e a ajuda nunca veio do lugar esperado. Quem reconstruiu sua casa foram as igrejas, os vizinhos, os braços solidários da comunidade em não a prefeitura. Já Irineide, marcada por uma vida inteira de enchentes, aprendeu a conviver com o medo sempre que o céu escurece. Ela segura nos varais, guarda documentos em alto e tenta se proteger de algo que não deveria temer.
Outro lado
A reportagem entrou em contato com a Prefeitura pedindo um posicionamento sobre os temas abordados, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. Caso haja algum retorno, a matéria será atualizada.