O samba não é valsa: em busca das origens
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Anderson Marzinhowsky Benaglia, Cecília Carrilho,
Julia Candiani e Letícia Mares Guia (3º semestre de Jornalismo)*
*Trabalho realizado para a disciplina de Grande Reportagem, sob orientação do professor Antonio Rocha Filho
Capítulo 1 – A origem do samba
Imagine um compositor sentado a uma mesa rodeado de instrumentos, documentos e partituras. Ele gasta seu tempo criando incansavelmente algo inovador. Quase tudo foi identificado, incluindo instrumentos, música e figurinos. Mas havia uma coisa que o preocupava: “Como devo nomear o novo gênero musical que criei?”
Essa cena parecia no mínimo estranha. Nunca ouvi falar de um compositor que planejasse criar um estilo de música nos mínimos detalhes, incluindo seu nome. Em geral, os gêneros musicais surgiram ao longo dos anos como resultado da experimentação de diferentes músicos e de contextos históricos específicos. Um exemplo claro desta evolução é o samba.
Para entender a evolução desse gênero musical, nada melhor do que conhecer alguém que nasceu em uma terça-feira de Carnaval. O Seu Fernando Penteado, neto do fundador da escola de samba Vai-Vai, é um dos embaixadores-mestre do samba no estado de São Paulo. Em uma tarde de quinta-feira, fui visitar essa enciclopédia viva, que carrega consigo 77 anos de história do Carnaval paulistano. Ele me recebeu com a mesma hospitalidade que, imagino, seus antepassados ofereceram aos ritmos e danças que formaram a base do samba. Ele mora em uma espaçosa casa no Parque Edu Chaves, zona norte de São Paulo.
Logo de início, Seu Fernando me convidou a conhecer sua casa, especialmente seu cantinho, onde guarda recordações da trajetória da escola de samba, incluindo o pavilhão da escola. Estandarte, pavilhão, pendão, são alguns dos nomes para se referir à bandeira, que carrega valores simbólicos para diferentes sociedades. Cidades, estados, países, times de futebol e procissões religiosas possuem esse elemento como símbolo de representatividade. As bandeiras são exibidas em manifestações, festas, órgãos públicos e nas escolas de samba, onde são reverenciadas pelas comunidades e guardadas pelo casal de mestre-sala e porta-bandeira.
Fernando Penteado segurando o pavilhão histórico da Escola de Samba Vai-Vai que rememora o cordão carnavalesco Vae-Vae. Foto: Cecília Carrilho
Na história, as bandeiras são muito mais que pedaços de tecido; são dotadas de significados, representando grupos sociais por suas cores, símbolos e outros elementos. Na África, segundo artigo de Vivian Caroline da Silva Pereira, as referências mais antigas a rituais com bandeiras vêm de tribos primitivas que usavam pedaços de couro de animal e vegetais para se identificarem – as primeiras bandeiras da humanidade. O pavilhão representa a identidade da escola de samba, carregando a essência e a história da comunidade. Além disso, esses tecidos simbólicos já foram utilizados para o reconhecimento e reencontro das famílias africanas escravizadas no Brasil no século XVI.
Fernando comentou sobre um paninho que os negros escravizados traziam sempre junto. Era a única lembrança que eles tinham de suas famílias. Quando os navios negreiros chegaram ao Brasil, as famílias mal tinham tempo de se despedir antes de serem separadas pelos senhores das fazendas. O mais velho da família desenhava um símbolo no tecido e o dividia, para cada membro ficar com um pedaço. Afinal, quem sabia quando se veriam novamente? Os senhores evitavam comprar escravos da mesma família para impedir rebeliões e fugas. E para dificultar ainda mais a comunicação, separavam as famílias, já que cada tribo tinha seu próprio dialeto. Mas aquele pedaço de pano, um dia, seria o estandarte que os reuniria novamente. Os amacis são uma espécie de banho aromático usado para purificação em rituais de religiões de matriz africana.
Assim que me acomodei na casa de Seu Fernando e preparei gravador e microfone, ele, sem precisar de nenhuma pergunta, começou a entrevista. “O samba nasceu nas fazendas, com as mãos escravas tocando e batendo ritmos. Na senzala, faziam rodas para agradecer por vencerem mais um dia. As pretas velhas, que, na verdade, nem sempre eram tão velhas assim, faziam os amacis, usando ervas para limpar e purificar o espaço. E era ali, nesse círculo sagrado, que o samba acontecia.”
No final de dias exaustivos, após o trabalho árduo e os castigos constantes, os escravizados se reuniam nas senzalas e começavam a cantar. Mas como Seu Fernando bem definiu, não era uma simples canção; era uma reza, uma forma de agradecer aos orixás por mais um dia de vida. “As rodas de samba, de capoeira e as danças das baianas têm em comum o formato circular, simbolizando a purificação do espaço. No centro dessas rodas, os escravos cantavam e dançavam, agradecendo aos orixás pela força para enfrentar mais um dia de sofrimento. Era assim que eles purificavam e fortaleciam seus espíritos.”
Esses rituais sempre começavam com os mais velhos, um sinal de respeito. A pessoa ia até o centro da roda, segurando um paninho e, olhando para o céu, começava a rezar pela sua família. A reza se repetia várias vezes. Na segunda ou terceira vez, todos já sabiam a melodia e, juntos, rezavam e cantavam. Seu Fernando me explicou que, naquele momento, cantar e dançar iam além do simples ato de ouvir o outro; era o próprio orixá cuidando de cada um, internalizando e manifestando a espiritualidade. Para o Seu Fernando, não existe jeito certo ou errado de dançar o samba; basta deixar seu orixá dançar por você.
Assim que uma pessoa terminava de dançar, escolhia outra que estava sentada na roda, observando. Durante a entrevista, ele compartilhou uma tradição interessante: a roda do “bate umbigo”. Nela, o umbigo simboliza a fertilidade e a pureza. Os participantes da roda tocavam seus umbigos uns nos outros, transferindo pureza e energia espiritual. “Naquela que cantei, eu me purifiquei todinho. Estou limpo, e o umbigo é símbolo de fertilidade. Então, toda a minha pureza eu passava para o próximo através do umbigo”, conta Seu Fernando. Esse gesto era um rito de renovação e fortalecimento coletivo, essencial para a sobrevivência emocional e espiritual dos escravos. “Era a roda do semba, palavra que deu origem ao samba.”
Antes de essa música ser criada, atualmente nomeada de “samba”, o termo significava celebração. Outros estudiosos também afirmam que as raízes da palavra “samba” residem no termo africano “semba”. Este termo descreve um estilo de dança onde os dançarinos se reúnem para sacudir a barriga. Segundo o Dicionário Aurélio, o significado original deste termo também é “animar-se” ou “pular em busca da felicidade”.
Enquanto ele falava, eu podia quase ver as cenas que ele descrevia. As noites nas senzalas, os escravos exaustos, encontrando forças nas rodas de samba para cantar e dançar, em um ato de resistência e esperança. Era um momento de comunhão, em que o mais antigo liderava as rezas, e todos se uniam em canto e dança, fortalecendo os laços comunitários e espirituais.
Cada uma dessas formas mantém viva a essência da resistência e da celebração que marcou a origem do gênero. E figuras como o Seu Fernando Penteado são essenciais para garantir que essa rica herança continue a ser celebrada e respeitada.
Fernando Penteado vestindo uma camiseta com estampa que reforça a história da Vai-Vai ao lado do pavilhão da escola. Foto: Pedro Stropasolas
As palavras dele ressoavam como um lembrete de que o samba é, acima de tudo, uma celebração da vida, uma expressão de um espírito que, apesar de todas as adversidades, continua a dançar, a cantar e a resistir. E é nesse ritmo, nesse compasso, que a história do samba continua a ser escrita, um verso de cada vez, uma batida após a outra.
Um aspecto interessante que evidencia como o samba é parte integrante da construção de uma história e de uma comunidade está relacionado à própria história da escola de samba de Seu Fernando, a Vai-Vai. Originalmente localizada no bairro do Bixiga, a escola precisou se realocar devido ao início das obras da linha laranja do metrô, que ligará a Brasilândia, na zona norte, até a Estação São Joaquim da Linha Azul, na zona sul.
Como uma marca dessa memória, Seu Fernando trouxe consigo um símbolo significativo: um paralelepípedo. Ele acredita que foi seu avô quem ajudou a colocar aquele paralelepípedo na rua. Ao acompanhar a reconstrução do espaço da escola de samba, ele decidiu pegar um desses paralelepípedos e levar para sua casa. “Quando às vezes eu estou aqui em casa, sento na cadeira e coloco meu pé no paralelepípedo, para mim ali parece que eu estou no Bixiga.”
Essa história ilustra como o passado e as memórias mantêm viva a história e a essência da comunidade. A conexão emocional e física demonstra o poder das lembranças e dos símbolos na preservação da identidade e da história cultural da Vai-Vai, remetendo à origem da escola de samba, onde tudo começou.
O samba, afinal, é mais do que um gênero musical. É a voz de um povo, a batida de um coração coletivo que pulsa há séculos, resistindo e celebrando, sempre de mãos dadas, sempre em roda.
Capítulo 2 – Velha Guarda
“Nós temos todos os segmentos de uma sociedade dentro de uma escola de samba”, disse Seu Fernando, com sua voz rouca que inspira a imaginação. Ele estava sentado em uma poltrona, uma poltrona que parece uma cadeira ou uma cadeira que parece uma poltrona. Mas o importante é que sua figura alta preenche todo o espaço e não permite que eu fique muito tempo prestando atenção no ambiente que ocupa. Ele olha no meu olho e é como se esse olhar fizesse uma pergunta, questionando se eu estava apta a entender a grandiosidade da história que estava me contando. Se eu compreendia que o samba não é só ritmo, música ou batuques. É uma história viva.
Penteado contou que na escola de samba Vai-Vai só é permitido que crianças desfilem a partir dos 6 anos. Mas que, muitas vezes, crianças menores vão acompanhar o ensaio junto com outros familiares que já desfilam. E pelas beiradas, elas acompanham e dançam como se fossem todos sambistas crescidos. Mas, quando chega o grande dia do desfile, essas crianças não podem entrar na avenida. Elas choram e pedem com vontade que permitam sua entrada ali mesmo, minutos antes do início do desfile.
Seu Fernando disse que a escola de samba pede para as mães não trazerem as crianças que não irão para a avenida. Para que elas não fiquem passando vontade. E assim, tem início o mais jovem grupo de integrantes de uma escola de samba. Com essas crianças tão pequenas que nem pisar na avenida podem. Os anos vão se passando e a posição que cada integrante ocupa dentro da escola vai se alterando de acordo com a idade e o tempo de casa. Até chegar à Velha Guarda, posição de prestígio que Seu Fernando narra ocupar com orgulho. Eles são os guardiões da origem do samba, pessoas que, no mínimo, já passaram duas décadas como participantes da escola.
E, voltando para as crianças, ele narra que na época dos ensaios feitos do lado de fora, nas ruas de São Paulo fechadas somente para o evento da agremiação, muitas mães chegavam e soltavam seus filhos no meio do ensaio, no meio da rua. As crianças ficavam livres para brincar sempre próximas às pessoas conhecidas da escola de samba. Penteado explica por que isso acontecia: “Porque tem quem cuida”.
Os integrantes da Velha Guarda têm a missão de transmitir às novas gerações a história de sua agremiação e manter vivas as tradições do Carnaval no Brasil. São essas pessoas que estão sempre cuidando de todos nós. Foram eles que cuidaram das crianças que brincavam na rua, e são eles que guardam e protegem a história do samba.
“Qualquer escola tem divergência entre departamentos, pessoas, mas o respeito nunca se perde. Porque nós, Velha Guarda, procuramos sempre estar conversando com os jovens e passando o que essa história é. Às vezes eu brinco, eu levei varada na perna do Carnaval. Samba, menino! Brinca! Você é muito fechado. A gente fala, não acredito que era assim. Hoje não tem mais isso. Mas é aquela coisa, vamos cantar, vamos brincar, vamos sorrir! É essa alegria que o Carnaval traz para toda essa juventude que vem vindo aí”, disse Edson Paulino, apelidado de Buiu da Vai-Vai, integrante da Velha-Guarda dessa escola.
Mais do que contar a importância dessa ala das escolas de samba, ouvir o que eles têm a dizer é essencial. Como os integrantes das velhas guardas de agremiações variadas se descrevem. E no discurso de cada um deles tem uma palavra que sempre se repete: respeito.
Essa é a tônica no tratamento que os integrantes das Velhas Guardas recebem. Assim como disse Mario César Magalhães, presidente da Velha Guarda da Camisa Verde, os membros mais jovens de sua escola geralmente têm alguma história para contar sobre como um membro da Velha Guarda o guiou para chegar no lugar onde hoje está. César conta sobre os jovens músicos que decidiram se aventurar nesse caminho porque viram uma apresentação da Velha Guarda Musical do Camisa Verde, evento em que os sambistas tradicionais e reconhecidos se apresentam.
Essas pessoas inspiraram jovens a seguir o caminho de compositores e musicistas porque viram na sua frente que era possível. Para Mario César, “A Velha Guarda Musical do Camisa Verde aqui em São Paulo é uma das pioneiras. Com essa representatividade que ela procura fazer, levando o samba para todos os cantos para todas as pessoas entenderem como funciona. Porque o samba é resistente, mesmo com as grandes dificuldades que surgem nesse mercado musical. O samba realmente é uma resistência.”
Uma resistência que só existe graças à luta das pessoas desse grupo. Luta essa tão bonita, que tem jovens que almejam em sua trajetória chegar à posição de integrantes da Velha Guarda de suas escolas de samba.
E assim é o samba. Uma arte que se passa de pai para filho. Desse contato, desde a infância, nasce a admiração pelos mais velhos e pelo conhecimento que carregam. Como também me contou o Seu Fernando, que narrou a importância de ter tido sempre a companhia de pessoas mais velhas durante sua juventude.
Ele descreveu uma brincadeira que faziam seus amigos durante aquele tempo: “Meus amigos falavam, ‘Você só anda com velho, Fernando!’, mas eu gostava disso. Tanto que, no prédio Martinelli, onde meu tio e meu pai tinham o clubinho deles, no 13˚ andar foi fundada a Federação das Escolas de Samba. E eu fiz com o meu filho o que o meu pai fez comigo. Meu pai me levava nessas reuniões, e eu levava o meu filho. Eu me via nele, era a mesma coisa que eu fazia.”
E foi por estar na companhia desses baluartes do samba que possibilitou que Penteado assistisse às reuniões da Federação e começasse a abrigar em si mesmo o conhecimento da arte do samba.
“A importância da Velha Guarda, não só na minha escola, mas no mundo do samba é passar esse aprendizado. Respeito e educação que a gente tem que ter com os pavilhões. É ensinar para a gente sobre esse mundo tão mágico de tanto amor e respeito.” Michele Maira, com apenas 17 anos, musa da corte infanto-juvenil da Mocidade Alegre em 2024, revelou que o objetivo dos integrantes da Velha Guarda de sua agremiação se cumpriu. Ela se tornou uma jovem que reconhece e respeita a história de sua escola de samba e a história que esse ritmo traz consigo.
Já Seu Fernando mergulhou em suas memórias e me contou uma vivência com seu neto. Ele falou com um olhar cheio de orgulho, próprio de quem vê mais uma geração de sua família entrar para o samba. “O meu netinho hoje tem sete anos, e ele canta sambas de 40, 50 anos atrás. Porque a gente não deixa morrer. A gente pergunta para os chefes de ala: me fala o nome de um dos fundadores da Vai-Vai” e eles respondem “Ixe… Seu Penteado, eu esqueci”. “Então quando você lembrar você vai ter a sua ala de volta. Então a molecadinha que está hoje, eles estão sabendo. É como nós, todos nós tivemos pai, tivemos avô. Mas e o bisavô? Poucos lembram. E o tataravô? Poucos lembram. E é isso que nós devemos também fazer, vai procurar a sua origem, a sua família”.
Seu Fernando deixou no ar uma provocação que instigaria qualquer um, com seus olhos inspirando o brilho de quem sabe o que diz. Ele tem consciência de que plantou em mim uma vontade, e um pouco de vergonha, ao me fazer refletir o quanto eu sei dos meus próprios antepassados. Da minha própria Velha Guarda.
Para Antônio Carlos Ferreira, integrante da Velha Guarda da Barroca Zona Sul, a Velha Guarda: “São pessoas que deixaram história dentro da escola, que têm um respeito. São um exemplo para as pessoas que vêm hoje em dia fazer um tipo de história que nós fizemos, entendeu? São representantes que já fizeram muito pela escola e chegaram a esse patamar, e não é qualquer um que chega na Velha Guarda. Então, é isso aí. A Velha Guarda é isso aí. É um respeito total”.
Esse grupo é composto por representantes de quem já viveu muita coisa dentro do samba e, por isso, são capazes de reconhecer a essência desse ritmo e proteger tanto a continuidade de sua história, como seu início. Os membros mais jovens e o nascimento de uma nova história. “Não existe uma escola de samba se não tem a Velha Guarda. Então ela é a representação do nascimento de uma escola de samba”. Bruna Negreska, integrante da Tom Maior, revelou a intensidade do trabalho que exercem essas pessoas que cuidam de preservar uma história que é viva.
Seu Fernando me apresentou o samba-hino de todas as Velhas Guardas, composto pela Vai-Vai. Mesmo afirmando não ser cantor há muito tempo conseguiu me fazer viajar pelas notas de melodia, que diz o que está nos versos a seguir e pode ser ouvido na gravação:
Quem é?
Que guarda a memória do Samba?
Quem é?
Que faz do Samba o seu viver?
Quem é?
Que o Samba é seu sobrenome?
Quem faz o Samba germinar?
É a Velha Guarda seu moço…
São sambistas de primeira
Relicário seu igual
Essência da nossa cultura
Patrimônio nacional
Essa é a nossa Velha Guarda
A quem devemos respeitar
Graças a estes baluartes
O Samba e o mais alto patamar
(Oi quem é)!.
Ilustrando todo o tratamento que essas pessoas, integrantes das Velhas Guardas, merecem e recebem de seus componentes. João Pedro Gomes, da escola de samba Tucuruvi, me contou: “Sempre que eu vejo que estou de boné, eu tiro para cumprimentá-los. Pelo respeito, né?”. Afinal, deve-se sempre respeitar quem ensina a arte de viver.
Capítulo 3 – Jovens no samba
Ao conversar com Seu Fernando, o que mais me marcou foi sua sabedoria. Fernando Penteado sabia de tudo, ele conhecia toda a história do samba de cor e salteado, ou melhor, de cor e sambeado. Sua voz transmitia história, e é disso que os membros da Velha Guarda são feitos.
As experiências vividas na infância por esses membros são mencionadas como influências marcantes em seus desenvolvimentos musicais, como afirma o artigo Um estudo sobre o samba e os sambistas da Velha Guarda soteropolitana, de Welissa Lopes Saliba Maia Carvalho. Além do mais, as narrativas dessas pessoas revelam não apenas suas trajetórias musicais, mas também suas trajetórias na vida em geral.
Muitas pessoas nascem e crescem no samba, tornando-se parte integrante da Velha Guarda. É um ciclo: aqueles que aprendem com a Velha Guarda, eventualmente se tornam parte desse grupo.
Estive presente no evento de definição da ordem dos desfiles do Carnaval 2025 e pude conversar com pessoas de diversas idades e alas, desde indivíduos das Velhas Guardas em si, como também rainhas, princesas e membros das Jovens Guardas. Essas pessoas tinham a mesma visão sobre os veteranos do samba, um ponto de vista que transbordava de admiração, e para mim isso foi o componente mais lindo de todo o evento.
Bruna Negreska, da escola de samba Tom Maior. Foto: Arquivo Pessoal
Conversando com Bruna Negreska ficou ainda mais clara a importância da Velha Guarda como guardiã da tradição. Bruna expressou numa conversa curta que o grupo é a representação do nascimento de uma escola de samba, e por isso é tão significativo.
Ao mergulhar nas raízes do Carnaval representadas pelos veteranos do samba, os jovens encontram não apenas uma ligação com o passado, mas também um guia para o presente e o futuro.
Pude perceber com Thamires Seixas, rainha de bateria da escola Brinco da Marquesa, a visão de que a Velha Guarda é, nas palavras dela, o “chão da escola”, representando o amor e o carinho pela comunidade e pela cultura do samba. Para ela, a Velha Guarda não é apenas uma presença física, mas um símbolo de dedicação e devoção que influencia os mais jovens a seguirem seus passos: “Eu me inspiro muito na Velha Guarda. Desde quando eu entrei, quando eu era criança, sempre olhei, sempre achei muito bom. E eu falo que depois que eu sair do cargo de rainha, eu vou virar Velha Guarda um dia”.
Thamires Seixas com o figurino 2024 de Rainha de bateria da Escola Brinco da Marquesa. Foto: Reprodução Instagram
No calor das noites de samba e nos ritmos frenéticos, uma história rica e ancestral ganha vida sob o brilho das luzes. Para os jovens que dançam ao som dos tamborins e desfilam com orgulho suas cores, a Velha Guarda do Carnaval é uma fonte de inspiração e sabedoria.
Michele Maira, integrante da Mocidade Alegre, ressalta o papel educativo e inspirador dos veteranos do samba, transmitindo valores de respeito e tradição para as gerações mais novas. Ela reconhece a importância de aprender com a experiência e o conhecimento acumulado ao longo dos anos pela Velha Guarda, enriquecendo assim a jornada de cada jovem no Carnaval.
Michele Maíra em atividade na Barroca Zona Sul. Foto: Arquivo Pessoal
E é isso, é esse respeito que todos têm pela Velha Guarda, é essa referência que é vista neles que mantém todas as escolas unidas. Além do mais, esses grupos são considerados os guardiões da identidade das escolas de samba, uma identidade que é passada de pai para filho.
Roberto Piedade, da Imperatriz da Paulicélia, expressou sua gratidão pela inspiração e incentivo proporcionados pela Velha Guarda, que molda não apenas dançarinos, mas verdadeiros sambistas que carregam consigo o legado de uma cultura rica e vibrante.
Contudo, Roberto Piedade não é só sambista, ele é também pai de um menino de 13 anos, que está na mesma escola que ele. Piedade repassa os conhecimentos de músico mais velho para o filho Roberto Gonçalves, que já reflete sobre a importância da Velha Guarda como matriarca da escola. O menino aprende com esse grupo não apenas as técnicas de desfile, mas também valores que são fundamentais para manter viva a alma do Carnaval: “Eles ensinam o Carnaval para gente, na realidade. Eles ensinam como desfilar, como ter postura, como se comportar. São os nossos professores”.
Para os jovens que dançam e sonham no ritmo do Carnaval, a Velha Guarda é muito mais do que uma lembrança do passado; é a luz que guia seus passos, a voz que ecoa sua história e a força que impulsiona seu futuro. Em meio aos brilhos e cores da folia, a Velha Guarda permanece como uma testemunha viva do amor, da tradição e da magia que permeiam o Carnaval, inspirando gerações e tecendo os laços que unem sob o manto da festa mais brasileira de todas.
Capítulo 4 – Embranquecimento
Seu Fernando me disse que cresceu na Bela Vista, em São Paulo, embalado pelo som do surdo e do cavaquinho, pelos versos rimados que ecoavam pelas ruas e pelas histórias contadas por quem vive o samba com o coração. Mas, ao longo dos anos, tem observado uma transformação inquietante: o embranquecimento do samba e das escolas de samba.
Este fenômeno não se limita à cor da pele dos participantes, mas abarca também a essência, a identidade e a autenticidade de uma manifestação cultural profundamente enraizada nas comunidades negras do Brasil que não pertence ao povo branco.
O samba emergiu como uma expressão legítima da cultura afro-brasileira, nascido das rezas, batuques e danças trazidas pelos escravos africanos e transformadas pela criatividade e resistência de um povo que, mesmo diante de tanta adversidade, encontrou no samba um meio de celebrar a vida, a luta e a resistência. As escolas de samba, surgidas na década de 1920, se tornaram um dos principais palcos dessa manifestação cultural, espaços onde a comunidade se reunia para criar, compartilhar e viver intensamente a cultura do samba.
Contudo, com o passar dos anos, o samba passou por um processo de embranquecimento. Esse processo, que inicialmente pode parecer uma simples mudança demográfica, traz consigo implicações complexas. A apropriação cultural e a comercialização do samba têm contribuído para a diluição de suas raízes afro-brasileiras, transformando-o em um produto de consumo que muitas vezes perde sua conexão com a história e a vivência das comunidades que o criaram.
Um dos sinais mais evidentes desse embranquecimento é a mudança no perfil dos integrantes das escolas de samba. O que antes era um espaço predominantemente negro, com líderes comunitários que eram verdadeiros guardiões da tradição, tem se tornado cada vez mais branco, especialmente, cargos de destaque, como os presidentes das escolas, os carnavalescos, rainhas de bateria, intérpretes entre outros. Esse fenômeno é particularmente visível nas alas das baianas, nas baterias e até mesmo nos mestres-sala e porta-bandeiras, que outrora eram ícones de representatividade negra.
Segundo levantamento feito por estudantes de Jornalismo da ESPM e publicado no Portal de Jornalismo da faculdade, no Carnaval de 2022, a Liga das Escolas de Samba contabilizava apenas oito carnavalescos negros entre as 34 principais escolas entre os grupos Especial, Acesso I e Acesso II. Das 14 escolas do grupo de elite, apenas uma tinha um carnavalesco negro.
Mas por que isso é um problema? Conversei com inúmeros sambistas, especialmente, os membros das Velhas Guardas de escolas de samba e, por unanimidade, a resposta está na perda de identidade cultural e na desvalorização das raízes do samba. Não só, mas quando a cor da pele dos participantes muda, frequentemente ocorre também uma mudança na abordagem e na interpretação do samba.
A essência, os valores e a tradição afro-brasileira frequentemente são deixados de lado em prol de uma estética palatável ao grande público e ao mercado. O samba, que sempre foi um símbolo de resistência e identidade negra, passa a ser visto apenas como entretenimento, desvinculado de suas origens. “É por isso que a gente briga até hoje, não para separar, mas para nos reconhecer. Passou a ser lícito, o branco chega e pega para ele. Então a nossa cultura está sendo roubada nesse sentido”, diz Fernando Penteado.
Seu Fernando me contou sobre o fato de o samba não ser uma valsa (ritmo tipicamente europeu). Ele e outros sambistas antigos como o Edson Paulino e a Rita Barbosa, disseram que antigamente o principal critério de avaliação de uma escola de samba era o chamado “samba no pé”, ou seja, a habilidade da escola em representar com fidedignidade todo o movimento histórico, cultural e religioso que o samba significa.
Aliás, Seu Fernando me disse que as pessoas não sambam como querem. São os orixás que, incorporados nessas pessoas, se manifestam de forma única, personalíssima, de modo que não se pode reproduzir. Entretanto, a presença do branco no samba fez com que esse critério fosse deixado de lado, segundo ele, por ignorarem justamente sua origem e fé.
Por não conseguirem sambar, entrou em cena a chamada evolução, ou seja, a demarcação da dança, da performance dos integrantes da escola, que devem estar em perfeita harmonia, algo semelhante a uma marcha militar, como me contaram Seu Fernando, Rita, Edson, Lemos, Paulo Melo e outros que entrevistei.
Em uma valsa é possível avaliar sua evolução porque contamos um ou dois passos para um lado e um ou dois passos para o outro lado, diferentemente do samba, que não possui essa regularidade, especialmente, por representar uma manifestação única, com passos espontâneos daquele momento. Reconhecer um critério de avaliação do samba como esse é colocá-lo em uma caixa a qual ele não pertence e representa uma marca significativa da presença do homem branco no samba. “Até a década de 1970 as escolas de samba eram julgadas dentro de seus quesitos. Era samba no pé. Mas a partir de 1968, quando começou a ter a primeira subvenção, passou a ter dinheiro, aí a escola começou a embranquecer. Quando chegou a década de 70, samba no pé pulou para evolução”, disse Seu Fernando. Como não conseguiam ter o samba no pé, então colocaram a evolução, explicou o sambista.
Além disso, o embranquecimento reflete e perpetua desigualdades sociais e raciais. As escolas de samba, que historicamente foram espaços de inclusão e empoderamento para a população negra, tornaram-se menos acessíveis para aqueles que não se enquadram no novo perfil. A ascensão social e a valorização do negro na cultura do samba são minadas por uma estrutura que privilegia o branco, mesmo em um espaço que originalmente não lhe pertencia.
Outro aspecto preocupante é a influência do mercado e da mídia na transformação do samba. O Carnaval, que sempre foi uma celebração popular, tornou-se um grande negócio. Os desfiles das escolas de samba são transmitidos para milhões de pessoas no mundo todo e a pressão por patrocinadores e audiência frequentemente leva as escolas a adotarem posturas mais comerciais. A busca por um espetáculo visual e musical que agrade a todos muitas vezes resulta em enredos e apresentações que se afastam das temáticas e da musicalidade tradicionais do samba. “Ver um desfile de escola de samba hoje é bonito. Tem uma coisa feita para a televisão. Mas a cultura não tem. Estão esquecendo a verdadeira arte popular. Ela é pura, é de rua, não é para palco”, disse Seu Fernando.
A cobrança por fantasias, pela participação em desfiles e a venda de ingressos para acompanhar o Carnaval, embora tenha hoje inúmeras justificativas, representa mais um traço de afastamento do samba e sua origem.
Referências bibliográficas
BRASIL DE FATO. Vai-Vai, Quilombo Saracura e o metrô: obra reacende luta pela memória negra no Bixiga. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/08/29/vai-vai-quilombo-saracura-e-o-metro-obra-reacende-luta-pela-memoria-negra-no-bixiga. Acesso em: 02 jun 2024.
BRAVO. Dia do Samba: Saiba mais sobre a história do gênero musical. Disponível em: https://bravo.abril.com.br/musica/dia-do-samba-saiba-mais-sobre-a-historia-do-genero-musical>. Acesso em: 02 jun 2024.
CARVALHO, Welissa Lopes Saliba Maia. Um estudo sobre o samba e os sambistas da velha guarda soteropolitana. 2023. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/65404. Acesso em: 02 jun 2024.
MUNDO EDUCAÇÃO. Samba: Produto do Morro. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/carnaval/samba-produto-morro.htm#:~:text=O%20samba%20surgiu%20no%20come%C3%A7o,obtido%20por%20meio%20dos%20batuques. Acesso em: 02 jun 2024.
MUNDO EDUCAÇÃO. A Origem do Termo Samba. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/carnaval/a-origem-termo-samba.htm. Acesso em: 02 jun 2024.
PEREIRA, Vivian Caroline da Silva. Pavilhão: o manto sagrado. Medium, publicado para o Quilombo do Samba, 9.jun.2022. Disponível em: https://medium.com/a-porta-bandeira-e-o-pavilh%C3%A3o-tradi%C3%A7%C3%A3o-e-ancestral/pavilh%C3%A3o-o-manto-sagrado-6d2988d572d4#:~:text=Em%20%C3%81frica%2C%20as%20refer%C3%AAncias%20mais,as%20primeiras%20bandeiras%20da%20humanidade. Acesso em 2.jun.2024