CARREGANDO

O que você procura

Destaque Geral Notícias

Costureiras de Paraisópolis transformam o empreendedorismo em solução para violência doméstica

Compartilhar
Moradoras de Paraisópolis posam com coleção de roupas desenvolvidas por alunas do projeto  –  Foto: Ag. Cria Brasil

Victoria Cansian – 7º semestre de Jornalismo

Em meio às ruas de Paraisópolis, comunidade localizada próxima ao bairro do Morumbi, em São Paulo, uma iniciativa liderada por mulheres transforma linhas e tecidos em autonomia e renda. O projeto Costurando Sonhos Brasil já capacitou mais de 1.300 pessoas e se tornou referência no empreendedorismo das favelas.

O projeto começou em 2017 como um programa de profissionalização, antes de virar empreendimento, e tem um objetivo claro: promover a independência financeira de mulheres em situação de violência doméstica, por meio da capacitação em corte e costura de forma gratuita. Quem se destaca consegue uma oportunidade de trabalho remunerado e tem a missão de confeccionar as encomendas que a própria marca recebe.

A união entre responsabilidade social e sustentável é um diferencial da empresa e, por meio da técnica upcycling, dá um novo significado a materiais e peças que seriam descartados, o que evita o desperdício e reduz a necessidade de novas matérias-primas, contribuindo para um ecossistema de moda sustentável.

Costureira, Não. Empreendedora.

Maria Nilde Santos e Suéli Feio, as fundadoras, se conheceram em meio a militância e prestação de serviços na comunidade. Uma é maranhense, a outra paraense, mas enxergaram na capital paulista uma chance de fazer a diferença.

Anos antes do lançamento do Costurando Sonhos, em 2017, elas trabalhavam na União dos Moradores de Paraisópolis e receberam uma jovem mulher. Machucada e com o filho no colo, ela acabara de ser agredida pelo companheiro – e não havia sido a primeira vez.

Foi nesse momento que as amigas compreenderam que, na periferia, a violência doméstica é acentuada pela dependência financeira das mulheres, que as condena a viver sob o mesmo teto de seus agressores. A partir daí, a dupla passou a pensar em formas de prover independência financeira às mulheres da periferia como uma forma de enfrentar a violência de gênero.

As duas escolheram o nicho de moda, mas quando começaram, não sabiam nem pregar um botão. “Outro dia ligaram aqui perguntando se quem falava era costureira. Eu disse que não. Eu sou dona de uma empresa que presta serviços de costura “, diz Suéli.

Segundo dados do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) divulgados em 2024, as mulheres representam apenas 34% dos empreendimentos no Brasil. Exigir o uso do termo empreendedora ou similares, como dona, é uma reivindicação justa, afinal, o mundo dos negócios é mais complexo para as mulheres, que enfrentam mais desafios.

Um dos maiores problemas para mulheres empreendedoras é a dificuldade em conseguir crédito. Como também aponta o Sebrae, os principais motivos são os critérios rígidos para a concessão de empréstimos, além de crenças limitantes sobre mulheres em posição de administração de negócios.

A pesquisa Panorama do Empreendedorismo Feminino, elaborada pelo Ministério do Desenvolvimento e Indústria, reconhece oficialmente a existência de vieses inconscientes, que fazem com que investidores confiem mais em empreendedores homens, o que torna a captação de recursos ainda mais desafiadora.

O mercado pode ser hostil com as mulheres, mas as obrigações domésticas escancaram uma realidade ainda mais cruel. Dados do IBGE, de 2023, indicam que as brasileiras dedicam, em média, o dobro do tempo aos afazeres domésticos em comparação aos homens. A desigualdade de gestão do tempo dificulta a dedicação integral ao negócio.

Os números provam que Nilde e Suéli não só ultrapassaram as barreiras sociais impostas a quem reside em regiões periféricas, mas também as de gênero, seja em vista da vulnerabilidade das mulheres atendidas, seja para o que elas representam para um mercado que ainda reproduz ideais machistas.

“Não é Gucci, é Paraisópolis!”

Para tirar a ideia do papel, a dupla buscou patrocínios em diversas instituições. Inicialmente, o Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) ofereceu 40 vagas em um curso de corte e costura gratuito para as moradoras da região na unidade do Brás. Nilde e Suéli negaram.

“Essas mulheres têm uma baixa escolaridade, baixa renda, têm filhos e precisam levar as crianças à escola. Como elas vão se deslocar de Paraisópolis até o Brás? Isso não ia resolver o nosso objetivo”, explica Nilde

Ousadas e sem medo de impor as urgências da comunidade para quem não as compreendia, elas pediram para que uma parte do curso fosse até Paraisópolis. Se inscreveram em um edital, conseguiram uma sala emprestada da Associação de Moradores e, após uma audiência, ganharam cinco máquinas e uma professora.

Com aulas em dois períodos, um total de dez alunas e duração de 40 dias de curso, o requisito inicial para participar era ser uma mulher residente na comunidade, com preferência para aquelas que vivenciavam situações específicas de vulnerabilidade, como a violência doméstica.

Nilde e Suéli eram as responsáveis pela organização das matrículas e por gerir a parte administrativa do projeto. Não demorou para que as amigas buscassem parcerias com empresas dispostas a ajudar.

Com apoio de grandes marcas, as participantes do projeto produziram sua primeira coleção, lançada no Palácio Tangará, hotel de luxo localizado no bairro Panamby. Os 11 modelos foram confeccionados em material 100% linho, o que tornou a produção cara, mas que foi se pagando à medida que marcas parceiras apostaram na força do produto, que chegou até a São Paulo Fashion Week em 2019.

Quando o assunto é moda, o Costurando Sonhos já mostrou que dá conta do recado e, durante a pandemia de Covid-19, em 2020, as aprendizes do projeto se mostraram mestres em compaixão. Mais de 5 mil máscaras de proteção foram confeccionadas e distribuídas na própria comunidade, como uma forma de ajudar a conter a propagação do vírus.

“Conseguimos manter a renda das nossas costureiras enquanto fazíamos esse trabalho de distribuir as máscaras. Era muito legal ver o rosto dos moradores recebendo, muitos não tinham condições para comprar uma”, conta Nilde

O Costurando Sonhos não emocionou somente Paraisópolis, mas sim o mundo. Por meio do projeto, as empreendedoras foram até Milão, a capital da moda, em um desfile em parceria com a marca de sapatos sustentáveis Dotz. Hoje, elas têm apoio de instituições internacionais e marcas nacionais, como a C&A, Google, Santander, Latam, Philco, Pernambucanas e muitas outras.

A marca também ganhou destaque em um evento da ONU. Em 2022, a fundadora do projeto Humanitas360, Patrícia Villela, fez um discurso na Organização das Nações Unidas. Na ocasião, a ativista foi questionada se o seu blazer era da Gucci.

“A jaqueta da Patrícia foi feita por nós, com o reaproveitamento de uniformes de funcionários da companhia aérea Azul, então ela respondeu: ‘Não é Gucci, é Paraisópolis”, conta Nilde.

A resposta rendeu destaques na mídia e as brasileiras chegaram até Nova York, deram palestra na Universidade de Harvard e, além de Milão, apresentaram a força do empreendedorismo feminino e periférico na França.

A potência do projeto chegou ao Miss Universo 2020, por meio da gaúcha Julia Gama, que usou um vestido confeccionado pelas costureiras do projeto e ficou em segundo lugar em um dos maiores concursos de beleza do mundo.

“Ela usou em um dos desfiles, e ficou em segundo lugar. Eu falo que ela ficou em primeiro lugar, porque só de ver que aquele vestido foi feito por nós, pelas costureiras de Paraisópolis, é muita coisa”, diz Nilde.

De Paraisópolis para o mundo

Apesar dos momentos de visibilidade serem os mais marcantes na vida das fundadoras e participantes do projeto, são os pequenos feitos do dia a dia que garantem a permanência do Costurando Sonhos.

Em geral, as costureiras confeccionam brindes corporativos, encomendas e fazem a transformação de peças para lojas. Para Suéli, o que nunca pode faltar é trabalho. “As coleções têm o seu momento de glamour, mas o que nos garante sustento são as encomendas de marcas que querem ter algo feito por nós. Não pode faltar serviço, porque com ele a gente vai mantendo o projeto”, explica.

Atualmente, o Costurando Sonhos Brasil oferece a capacitação em moda para outras comunidades, como Coroadinho (MA), Casa Amarela (PE), Sol Nascente (DF), Baixada do Jurunas (PA) e Rocinha (RJ), garantindo uma nova geração de profissionais capacitadas e com responsabilidade ambiental, atendendo mulheres e a comunidade LGBTQIA+

Quando o assunto é o futuro, Nilde e Suéli sonham em ter sua sede própria, pois ainda ocupam um espaço que é cedido, no balcão do G10 Favelas, em Paraisópolis. Nilde sonha ainda mais alto e, mesmo com uma história construída a partir de dificuldades mescladas com momentos de fama, seu objetivo é um dia conseguir produzir em grande escala.

“A gente nunca pensou em desistir, muito pelo contrário. Sempre pensamos em como fazer mais, ir além. Eu queria mesmo é ir ao shopping e ter nossa arara em uma grande loja. Mas já conseguimos muita coisa, eu sempre falo, fui de Paraisópolis para o mundo.”

Tags:

Você pode gostar também