Os desafios dos centros que acolhem e tratam animais silvestres no Brasil
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Lívia Guedes e Luiza Vezzá (4º semestre de Jornalismo)*
* Trabalho realizado na oficina de Jornalismo Investigativo, sob orientação da professora Bárbara Libório
Os Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), operados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), foram criados com o propósito de receber, recuperar e destinar animais silvestres vítimas de tráfico, maus-tratos ou acidentes. Anualmente, os Cetas recebem cerca de 50 mil animais no Brasil. No entanto, dados recolhidos para esta reportagem apontam que, desde 2019, os Cetas Federais vêm sofrendo dificuldades na manutenção de suas infraestruturas. Um dos casos mais emblemáticos é o de Seropédica, no Rio de Janeiro, que atende sozinho às demandas de todo o estado e chegou a ter suas atividades interrompidas ao menos três vezes desde então em meio a uma disputa entre Ibama e o governo estadual.
Mais recentemente, em fevereiro de 2024, a Superintendência do Ibama no Rio de Janeiro, alegando problemas estruturais em suas instalações, tentou barrar a recepção de animais silvestres provenientes de resgates ou apreensões feitas pelo estado. A Justiça Federal do Rio de Janeiro, contudo, emitiu uma ordem determinando que a unidade retomasse imediatamente a receber esses animais, assegurando a continuidade dos serviços essenciais prestados pelo centro.
A tentativa de paralisação reflete um problema que se estende há algum tempo: segundo a assessoria de imprensa do Ibama, há uma instrução normativa que estabelece que o uso de centros de triagem federais por entes municipais ou estaduais está vinculado à assinatura de acordo de cooperação técnica entre as partes. O estado do Rio de Janeiro nunca assinou tal termo.
Segundo Rogério Rocco, superintendente do Ibama no Rio, “o estado do Rio de Janeiro precisa se comprometer com ações efetivas sobre a proteção e gestão da fauna silvestre e isso não vem acontecendo”. Ele alega que quase 70% dos animais que estão no centro vieram de operações realizadas pelo estado, e que o Cetas está operando com mais do dobro da sua capacidade. “O estado acha que o Cetas é um depósito, ele chega lá com um caminhão e deposita animais, e depois num passo de mágica esses animais vão ter toda sua destinação adequada. Não é isso que acontece”.
De fato, desde 2011 o Ibama passou a assinar acordos de cooperação técnica com os estados e o Distrito Federal (DF), de modo que passasse a eles a competência da gestão da fauna em cativeiro. Na prática, quando não há esse convênio, cabe apenas ao Ibama receber e tratar os animais, arcando com todos os custos e responsabilidades. Uma gestão que é complexa por natureza, somada aos cortes orçamentários federais, fez com que a coordenação do centro ficasse cada vez mais desafiadora.
Problema histórico
Os problemas se repetem há anos. Além dos gargalos em nível estadual, cortes orçamentários federais também impactaram o dia a dia da unidade. Em de abril de 2019, o então presidente Jair Bolsonaro anunciou uma redução de 22% no orçamento do Ministério do Meio Ambiente, que impactou os órgãos a ele vinculados, como os Cetas. Dados obtidos pela reportagem mostram que o orçamento federal para todos os Cetas teve queda de R$ 1 milhão de um ano para o outro: foi de R$ 6 milhões em 2019 e R$ 5 milhões em 2020.
No Cetas Seropédica os desafios foram muitos. Em 2021, a unidade foi acusada de abandono dos animais após o rompimento do contrato com os tratadores, que eram terceirizados; os animais ficaram 50 dias sem receber cuidados ou alimentação. Naquele ano, mais de 600 animais morreram nas dependências do centro, que mesmo em condições precárias continuou recebendo animais. À época coordenado pelo superintendente Alexandre Dias da Cruz, contra-almirante da Marinha, o Cetas foi alvo de denúncias de maus-tratos e negligência, culminando em uma crise que levou ao fechamento temporário do centro pelo próprio Ibama. Após grande repercussão, o órgão federal reforçou a equipe do Cetas com 11 novos funcionários e instaurou cinco processos de investigações sobre as denúncias de maus-tratos que ainda estão em andamento.
Segundo o superintendente do Ibama no Rio de Janeiro, havia “uma grave má condução da instituição”. “A gente esteve no bojo de um governo que foi expresso no objetivo de desmontar as políticas ambientais, desmontar os órgãos ambientais, militarizar a administração de um órgão civil, é evidente que esses objetivos de desmonte, eles foram bem sucedidos. No caso do Rio de Janeiro, resultaram na morte de mais de 600 animais.”
Devido à pandemia de Covid-19, o Cetas operava em plano de contingência, recebendo apenas animais resgatados em situações emergenciais. Ainda assim, dados obtidos via Lei de Acesso à Informação mostram que a unidade, que abrigava 353 animais antes da pandemia, recebeu 5,2 mil animais em 2020 e 10,2 mil em 2021; o orçamento, no entanto, caiu – foi de R$ 620 mil para R$ 515 mil.
ORÇAMENTO POR ANO VS ANIMAIS
Em decorrência de uma série de problemas e irregularidades, no final de 2021 a unidade voltou a ser fechada, e Cruz foi exonerado do cargo de superintendente. Após um ano de reformas, o Ibama reinaugurou a unidade em dezembro de 2022, com melhorias significativas em sua infraestrutura e capacidade para receber cerca de 12 mil animais por ano, no entanto, o fluxo de animais é tão grande que as estruturas ainda não suportam.
Atualmente, o Cetas Seropédica é um dos que possuem mais funcionários registrados pelo Ibama, segundo dados obtidos por meio da LAI em junho de 2024. São seis funcionários: cinco analistas ambientais formados em agronomia, medicina veterinária e engenharia florestal, e um técnico administrativo. O centro, no entanto, está superlotado, segundo Rocco, “com um grave risco de colapso” e a necessidade de ampliar a quantidade de funcionários. “Dois servidores estão afastados já há um bom tempo por problemas psiquiátricos. A gente precisa ter servidor, suporte de vários tipos, e parar de receber animais até que a situação volte a uma condição de controle maior”. A equipe que está operando o centro atualmente veio de Brasília até que haja um chamamento de servidores oficiais.
Vale dizer que o quadro de funcionários da Superintendência do Ibama, no Rio de Janeiro, também não está completo: dos 26 cargos disponíveis, apenas 17 estão ocupados. Nas áreas de licenciamento ambiental (Nla), administração, patrimônio e gestão de pessoas (Nuape) e de fiscalização ambiental (Nufis), os cargos de chefe e substitutos não estão ocupados. As informações foram confirmadas por Rocco, que também destacou que a baixa remuneração e o excesso de responsabilidades desmotivam os servidores a assumirem esses cargos.
“O que se paga para um servidor exercer uma função dessas é insignificante, então não tem nenhum atrativo, até porque você assume muitas responsabilidades e o que você tem de retorno financeiro não justifica”. Rocco conclui que, no estado do Rio de Janeiro, há 60 servidores no Ibama, enquanto a necessidade é de pelo menos 170 .
A importância dos Cetas
Desde 2019, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, o Ibama apreendeu 1,1 milhão de animais que foram vítimas de crimes contra a fauna e tiveram diferentes destinos. A partir da Instrução Normativa nº 23/2014, em vigor desde 2014, os Centros de Triagem de Animais Silvestres são reservados para o atendimento de animais silvestres ou exóticos.
Segundo Aline Borba, fiscal ambiental da Administração Estadual do Meio Ambiente de Aracaju: “Todos eles (animais exóticos) devem ser encaminhados para os Cetas. Os silvestres, a condição vai variar bastante para encaminhar os animais que tem características que foram recém capturados da natureza, eles só vão para o Cetas caso necessitem de algum tipo de tratamento, ou dependendo dos horários em que foram feitas as apreensões. Os animais que vão para os Cetas e permanecem um tempo ali porque precisam de algum tipo de tratamento; os exóticos ficam ali porque a gente não tem condição de soltura, então eles ficam até ser dada uma destinação”.
As unidades se configuram como abrigo temporário para as espécimes, dedicando seu trabalho na identificação, marcação, triagem, avaliação, tratamento, recuperação, reabilitação e destinação dos animais recebidos e tendo como objetivo a devolução deles para a natureza. No Brasil, existem Cetas de dois tipos: os estaduais, que ficam sob responsabilidade das Unidades da Federação, e os federais, que são responsabilidade do Ibama. Em 2018, havia 45 unidades do Cetas no Brasil inteiro, segundo a distribuição e panorama dos centros de triagem de animais silvestres no Brasil, apresentada no 15º Congresso Nacional do Meio Ambiente, no mesmo ano. Não há dados mais recentes, mas sabe-se que atualmente 24 unidades dos Cetas estão sob gestão do Ibama.
Atualmente , os 24 Cetas sob gestão federal contam com 82 funcionários distribuídos de forma desigual entre as unidades. A reportagem pediu, por meio de Lei de Acesso à Informação para o Ibama, uma relação nominal de todos os funcionários registrados nos Cetas. Os centros com o maior número de funcionários são: Goiânia (GO), com sete funcionários; Belo Horizonte (MG) e Seropédica (RJ), ambos com seis funcionários. Os centros que se destacam com o menor número são: Santa Maria (RS), Montes Claros (MG), Juiz de Fora (MG) e Aracaju (SE), com apenas um funcionário registrado cada.
Outro lado
A assessoria de imprensa do Ibama foi contatada várias vezes por e-mails e ligações na tentativa de entrevistar os funcionários do Cetas Seropédica, mas o pedido foi negado. A Secretaria do Meio Ambiente da Prefeitura do Rio de Janeiro não forneceu o outro lado da história. A equipe da reportagem enviou um e-mail para agendar uma entrevista e realizou várias ligações. Embora tenha havido uma resposta positiva com a proposta de uma futura agenda para a entrevista, quando foi feito novo contato para confirmar a data para a realização, não houve mais resposta.
Metodologia
Para a apuração desta reportagem foi utilizada uma metodologia que envolveu o total de dez de pedidos de Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre relatórios detalhados de apreensões de animais e infrações, gastos anuais do Ibama e dos Cetas, incluindo orçamentos individuais, além de detalhes sobre fechamentos de unidades dos Cetas e mudanças na rubrica orçamentária. Também foram pesquisadas informações específicas sobre o quadro de funcionários de cada unidade. Foi ainda realizada uma análise da cobertura da imprensa do Cetas de Seropédica entre os anos de 2019 e 2024.