CARREGANDO

O que você procura

Destaque Jornalismo Investigativo

Cobertura de direitos humanos: a importância da linguagem cuidadosa e do conhecimento legal

Compartilhar

Mesa do Congresso da Abraji discutiu como cobrir feminicídios sem clichês e sensacionalismo (Foto: Luciana Vassoler/Abraji)

Laura Prates (3° semestre)

A cobertura de temas com implicações legais e sociais, como feminicídio, assédio sexual e aborto legal, exige domínio da legislação, rigor na apuração, cuidado com as fontes e atenção ao uso da linguagem e das imagens. Esse foi o foco das mesas “Como cobrir feminicídios sem clichês e sensacionalismo?”, “Como investigar assédio sexual e relações de poder” e “Aborto legal sob ataque: como investigar?”, que reuniram profissionais da imprensa para discutir critérios técnicos e éticos na cobertura de temas ligados aos direitos das mulheres no 20° Congresso da Abraji.

No evento, que aconteceu de 10 a 13 de julho na ESPM-SP, os participantes apontaram falhas recorrentes na cobertura desses temas e apresentaram estratégias para reportagens que evitem exposição indevida e distorções no tratamento da informação.

O papel da linguagem na cobertura do feminicídio

Ao tratar da cobertura de feminicídios, as palestrantes apontaram que a imprensa ainda reproduz narrativas que minimizam a gravidade do crime e reforçam estereótipos. Termos como “crime passional”, embora incorretos, continuam sendo utilizados, o que desvia a compreensão do feminicídio como um crime motivado por gênero. A jornalista Raíssa França, fundadora do portal Eufêmia, destacou que esse tipo de linguagem não encontra respaldo na legislação brasileira e compromete a precisão jornalística. 

Além do uso de termos inadequados, as jornalistas alertaram para a exposição da vítima por meio de imagens retiradas de redes sociais, especialmente no início da matéria. Mariama Correia, da Agência Pública, observou que o uso dessas imagens fora de contexto pode reforçar julgamentos morais e desviar o foco da apuração. Segundo ela, “Evitar esse tipo de exposição é uma forma de respeito à memória da vítima e aos familiares”, afirmou.

A mediação da mesa ficou a cargo de Hellen Lirtêz, jornalista e bolsista do projeto Defensores Ambientais da Abraji, com atuação voltada para temas de justiça racial, ambiental e de gênero. A partir dessa experiência, ela conduziu o debate sobre feminicídio destacando a importância da linguagem, do papel das instituições e da responsabilidade da imprensa na cobertura de casos de violência contra mulheres.

Ao final, Correia reforçou a importância de os jornalistas conhecerem a Lei nº 13.104/2015, que tipifica o feminicídio no Código Penal, e evitarem a reprodução de declarações policiais sem contextualização.

Assédio em relações de poder

O debate sobre assédio sexual em relações de poder teve como ponto de partida o caso envolvendo o ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. As denúncias surgiram após a demissão de servidoras de sua equipe, que relataram situações de assédio moral e constrangimento no ambiente de trabalho. Embora não tenha sido aberto um inquérito formal, jornalistas de diferentes veículos realizaram uma investigação conjunta, baseada em entrevistas, documentos internos e análise de padrões institucionais.

Os palestrantes enfatizaram que o assédio deve ser compreendido como parte de uma estrutura de poder e não como episódio isolado. Ana Clara Costa, da revista Piauí, afirmou que a apresentação das versões das partes envolvidas precisa considerar o desequilíbrio entre elas, uma vez que a vítima geralmente está em posição de menor poder.

Mateus Araújo, repórter do UOL, afirmou que os primeiros sinais vieram com o número elevado de denúncias de assédio moral no ministério, resultando em uma série de demissões. Segundo as fontes, “havia reuniões e demissões feitas a base de gritos”, comentou Araújo. Ele explicou que a apuração se desenvolveu a partir da identificação de padrões, o que exigiu uma investigação que extrapolasse um caso individual. Apenas posteriormente ele soube do caso de Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial no Brasil.

Guilherme Amado, do canal Amado Mundo e colunista do PlatôBR, respondeu às críticas recebidas pela publicação da matéria sem a autorização da ministra. Segundo ele, a decisão editorial foi tomada com cautela, após consulta com juristas especializados em direitos humanos. Amado argumentou que, em casos envolvendo possíveis violações cometidas por pessoas em cargos públicos, como a ministra Anielle Franco, há jurisprudência que reconhece o interesse público da divulgação.

Para o repórter, figuras públicas têm o direito à proteção, mas também assumem responsabilidades institucionais, sobretudo quando ocupam posições ligadas à promoção de políticas de enfrentamento à violência de gênero. “Imagine uma mulher que está sendo assediada em seu ambiente de trabalho e ela vê que a ministra da Igualdade Racial foi assediada e essa ministra não confiou no sistema legal e oficial de enfrentamento”, comentou Amado.

A mediação foi conduzida por Alice Maciel, repórter da Agência Pública.

Aborto legal: investigação deve considerar acesso e impacto institucional

Na mesa sobre aborto legal, as participantes abordaram como o direito ao procedimento, garantido por lei em casos específicos, vem sendo limitado por práticas institucionais e disputas políticas. Paula Guimarães, do Portal Catarinas, observou que o jornalismo pode contribuir com a apuração ao investigar como serviços públicos de saúde, decisões judiciais e ações de grupos organizados têm restringido o acesso ao aborto legal. Ela citou o conceito de “feminicídio de Estado” como forma de pensar as consequências da omissão institucional, visto que a negativa sistemática ao aborto legal pode resultar em agravamento da saúde física e mental da gestante.

A cobertura, segundo os palestrantes, deve se concentrar nos serviços e nas estruturas envolvidas. Mariana Carneiro, do jornal O Popular, destacou que o foco não deve recair sobre o perfil ou a história pessoal da mulher, mas nas condições sociais que cercam o caso.

Joana Suarez, da Revista AzMina e diretora da Abraji, ressaltou que o primeiro passo para abordar o tema é explicar quais são os direitos relacionados ao aborto legal no Brasil e quem tem acesso a esses procedimentos. Durante a mesa, ela apresentou o portal Aborto no Brasil, que reúne dados e informações atualizadas sobre o tema.  

Angela Boldrini, da Folha de S.Paulo, mediou o debate e lembrou que ferramentas como o site Mapa Aborto Legal podem auxiliar na verificação das unidades que de fato realizam o procedimento. Ela sugeriu que jornalistas cruzem informações sobre políticas públicas, decisões judiciais e a atuação de defensores públicos para compreender como o direito está sendo executado na prática.

Apuração responsável

As discussões da trilha de Direitos Humanos colocaram em evidência o que ainda falta consolidar na cobertura de temas relacionados aos direitos das mulheres: critérios claros de apuração, compreensão dos marcos legais e domínio sobre como estruturas institucionais operam ou falham. Ao expor erros recorrentes no uso da linguagem, na escolha das fontes e na abordagem dos casos, os debates apontaram que a imprecisão não é um ruído técnico, mas um elemento que interfere diretamente na percepção social do direito à vida, à justiça e à saúde. Além disso, os debates apontaram que a apuração não se encerra na revelação do caso: ela se mantém no esforço contínuo de mapear estruturas, relações de poder e brechas institucionais que moldam o noticiário.

Tags:

Você pode gostar também