Barbeiro de 96 anos orgulha-se de trabalhar no que gosta

Seu Chiquinho executando seu ofício na barbearia que leva seu nome. Foto: Cacá Junqueira

Com mãos firmes e tesouras afiadas, Francisco Villano, de 96 anos, corta cabelo e faz barba de homens que apreciam, há anos, o seu talento. Seu Chiquinho, como é conhecido, nasceu em 8 janeiro de 1917, no bairro da Vila Mariana. Lugar de onde viu a cidade de São Paulo se transformar, crescer e evoluir. Meio em que descobriu o valor que a vida ensinou: trabalhar no que se gosta, não mata.

A preocupação com um ideal de beleza e estética são pré-requisitos antigos. Na Grécia, com o surgimento das imagens das divindades, o tratamento com a perfeição corporal tomou proporções maiores. Foi assim que o barbear e o corte de cabelo virou hábito entre os homens.

A carreira de barbeiro iniciou aos 13 anos de idade. Os ensinamentos vieram do seu tio, Afonso Trotta. Em 1935, depois de oito anos exercendo a profissão, uma nova realização: Seu Chiquinho abriu um estabelecimento para atender os clientes na Rua França Pinto, onde está até hoje. Casa comum, de paredes e portões brancos. Na janela, o aviso: Barbearia do Chiquinho. É ali que mora e trabalha um senhor que, há 83 anos, acorda e dorme com uma tesoura e uma navalha nas mãos.

Cadeira confortável

O expediente começa cedo. Às 7 horas da manhã, Chiquinho já vestiu seu uniforme – camisa e calça social – e tomou uma xícara de café. Por ele, são cortados em média 15 cabelos por dia, nos dias de semana. Aos sábados, atinge aproximadamente 30 cortes. “Os clientes não precisam nem bater na porta. Eu acordo cedo, vou à padaria e distribuo pães para os funcionários, a vizinha e o guarda”.

Crianças e idosos passam pelo salão diariamente.  Mas as lembranças especiais são de amigos antigos que ainda frequentam a barbearia. “Eu tenho uma clientela que corta o cabelo comigo há anos e com o meu trabalho construi vínculos de amizades. Meu companheiro, Mário Torelli, um senhor de 103 anos, passa por aqui há 80 anos. Não tenho do que me queixar“, afirma.

O cliente Fábio Luiz Melo Pereira conta que o barbeiro cortou cabelo de cinco gerações de sua família. O cabelereiro, atento ao ofício e de ouvidos ligados à conversa, acrescentou: “Espero poder cortas mais três gerações dos Pereira”.

Calil Onaissi, também cliente e vizinho do salão, diz não ter conhecido um homem mais honesto e educado que Chiquinho. “Há senhores que moravam em São Paulo e agora vivem no interior, que fazem questão de vir uma vez por mês para receber os cortes de Chiquinho”.

As cadeiras da barbearia receberam nomes como o ex-deputado federal Tito Costa e o ex-prefeito Prestes Maias. O ex-presidente Jânio Quadros (1917-1992), que também foi seu cliente, era um homem por quem Chiquinho sentia grande admiração. “Ele era honesto, por isso, eu escolhia a melhor e mais confortável cadeira para ele se sentar”, confessa.

Duas vidas

Sentado em uma cadeira, o barbeiro começa a relembrar o dia do seu nascimento. As lembranças são muitas. As memórias do passado chegam com emoção e sorriso no rosto. Chiquinho, nascido durante a Primeira Guerra Mundial, logo apresentou sintomas da epidemia espanhola. Na época, a doença chegou a matar mais de 300 a 500 mil brasileiros, segundo dados presentes no livro A Gripe Espanhola de 1918, de Elvio Tuoto.

O barbeiro era o primeiro filho de Dona Philomena Trotta Villano e Seu Affonso Villano. Assustada, ela decidiu batizá-lo em casa, pois se morresse estaria com a benção de Deus. A cura veio. Seguindo a orientação de um padre, aos sete anos foi batizado na Igreja Católica. “Eu tenho duas vidas. Houve até festa para comemorar”, conta Chiquinho.

“A barbearia me deu o sustento e o trabalho me deu prazer”, diz. Como filho mais velho de seis irmãos, Chiquinho deixou de fazer um curso superior para ajudar a proteger a família. “Fiz a minha vida para não nos faltar nada”. Como ajuda até hoje. Aos domingos vai à feira comprar frutas e verduras para distribuir entre os três filhos, oito netos e seis binetos. “É um prazer ajudas aos amigos e familiares. Eu digo para meus filhos: ‘Não tenham inveja. Ajude e ame o próximo, porque um dia você pode precisar dele’”.

Palavras que se ligam ao passado da Vila Mariana. Época em que os vizinhos se cooperavam mesmo nas horas mais difíceis. “Quando uma senhora ficava doente, a vizinha recolhia as roupas dela para lavar e secar, sem custo algum. Isso demonstrava amizade. Caso alguém da família morresse, os vizinhos se reuniam para cozinhar durante sete dias. Isso significava cooperação”, relembra. Em dias de comemoração, a partilha se repetia. Famílias tradicionais saiam às ruas para comer pizza e celebrar com amigos. “Tive o prazer de reviver esses momentos este ano. No meu aniversário, houve uma festança na pizzaria com a presença de parentes, amigos e vinhos”. Às gargalhas, completa: “Tinha até bolo para apagar a velinha”.

Mamadeira de vinho

“Eu era um menino levado”. O Parque do Ibirapuera, com campos que ia desde a Rua Rodrigues Alves até a Brigadeiro Faria Lima, era o quintal das crianças que viviam no bairro. O gramado, com árvores frutíferas e lagoa, fez a diversão. “Era um corre-corre. Eu tomava banho na lagoa e saia correndo pelado pelo parque. Meu pai não gostava dessa brincadeira, mas eu me sentia livre”.

Seu Chiquinho também viu o Instituto Biológico sair do chão. Ele conta que, em 1932, antes de a obra ficar pronta, a tropa do ex-presidente Getúlio Vargas se instalou na construção, impedindo as crianças de brincar nos entulhos. “Os elevadores eram os mais divertidos da obra. Mas a turma de Getúlio Vargas chegou e não podia mais frequentar o prédio”, lamenta. O barbeiro chegou a jogar bola e cortar cabelo dos soldados gaúchos.

Amante da música, todos os dias o barbeiro sintoniza na Rádio Cultura para ouvir música clássica durante o expediente. Diz que a melodia é educação para os ouvidos. “As pessoas tem que amar o canto, sempre. Amar a música”. Os espetáculos de óperas, concertos e balés que eram apresentados no Teatro Municipal de São Paulo, também permanecem na memória de Seu Chiquinho. “Guardo até hoje os autógrafos dos artistas que eu visitava no camarim”.

Inquieto. É esse adjetivo com que Seu Chiquinho se identifica. Quando não há clientes, ocupa-se com outros afazeres. Troca a tesoura e o pente por lápis e palavras-cruzadas. “Gosto de ser ativo. Isso é culpa da minha mãe, que em vez de me dar mamadeira de leite, me dava mamadeira de vinho”, brinca o barbeiro, que aprecia a bebida duas vezes ao dia. Contente com a profissão que exerce, Seu Chiquinho não prevê a aposentadoria. Acredita que amar a profissão, criar vínculos de amizades e ter prazeres na vida são as fórmulas para brindar a vida.

Cacá Junqueira (5° semestre)