Um olhar sobre o senhor que está sempre no mesmo lugar, a casa 36

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As estações do ano mudam. Na copa da árvore, folhas, flores, galhos. Foto: Cacá Junqueira

 

Em uma casa simples de número par da zona sul de São Paulo, mora um senhor, que aparenta ter 80 anos de idade. No dia a dia desse homem de cabelos ralos e grisalhos não há nada de surpreendente. Um bloco de concreto se faz de poltrona para o velho, sentado sob uma árvore. Uma vida cercada por uma alta grade e por paredes brancas, com rachaduras. E é ali, no jardim da casa 36, que se passa essa história.

As estações do ano mudam. Na copa da árvore, folhas, flores, galhos. Porém, não há nada que faça mudar a rotina desse paulistano. O relógio não para, as horas passam e repetem os mesmos números no dia seguinte. Mas, para ele, os momentos parecem ser estáticos, desde a hora que acorda até o momento de ir dormir. Quieto, mas muito observador, está sempre no mesmo lugar: no jardim de sua casa.

O sol nem precisa dizer bom dia. Antes dos primeiros raios matinais, às seis horas da manhã, quem passa pela rua da casa 36 já consegue avistar, de longe, esse acanhado senhor. A coluna, curvada para frente por conta da velhice, se ajusta na camisa de tom pastel. As pernas são cobertas por calças de tecido escuro. No pé, um tênis branco encardido e meias brancas.

No frio, a rotina muda e atrasa em uma hora. O senhor do jardim parece preferir o aquecer do cobertor. Mesmo assim, não deixa de visitar a árvore, a cadeira de cimento. Os pedestres ali ao lado caminham. O vestuário não muda, apenas acrescenta um moletom de cor escura e um gorro para aquecer as manhãs frias da capital paulista.

O amigo falante

Mas nas manhãs frias ou calorentas, o companheiro inseparável não para de tagarelar. No jardim da casa 36, o rádio fica diariamente sintonizado na mesma frequência. Ele não fala nada. O amigo não para um minuto. Solta a voz e fala muito sobre política, economia e cultura. Às vezes, o companheiro também cantarola músicas clássicas para alegrar os ouvidos do fiel ouvinte. Nem assim, o senhor abre a boca ou até mesmo mostra um sorriso.

Apesar de não se desgrudar do rádio, que o acompanha a cada dia, parece se importar mais com quem caminha na calçada da casa do que no amigo falante. Cada indivíduo que passa é um olhar diferente. Um movimento brusco da sobrancelha. Franzidas de testa. O olhar persegue as passadas das pessoas que por ali atravessam. O rosto não se movimenta, a não ser que gritos atrapalhem-no na intenção de ouvir o cantarolar do camarada.

Ao sentar-se na poltrona em formato de muro, fria e desconfortável, as pernas, finas como cambitos, ficam inquietas. Parece brincar em uma gangorra. Balançam-nas para frente e para trás em ritmo infinitamente sincronizado. O corpo acompanha os movimentos de tempos em tempos. Não há esforço. Não há desconforto. Não há tédio, para ele.

Quem o convida para o almoço é sua irmã. Ela nunca aparece. Ouve-se a voz dela, pontualmente, às 12h30 da tarde, quando o chama para sentarem-se à mesa. Nesse momento, um ritual é feito. Ele se levanta. Observa. Confere a chave do portão. Entra na casa branca com janelas e portas da mesma cor.

Vida normal

Na volta do almoço, quem passa pela rua pela primeira vez nem nota a sequência frenética de acontecimentos. No entanto, os vizinhos e quem por ali trabalha nota que os hábitos se repetem. Ele senta-se na cadeira dura. Balança as pernas e o corpo. Olha ao redor. Liga e desliga o rádio. Faz cara e bocas. Sinais de alguém que aparenta ter uma vida normal.

Ao entardecer levanta-se da poltrona de cimento e começa a caminhada, ali mesmo, no jardim. Em um espaço pequeno, o senhor da casa 36 dá dez passos para a direita, vira-se e retorna caminhando dez passos para a esquerda. Em movimentos contínuos, repetitivos e tranquilos, o velhinho vai se despedindo de mais um dia inalterado de normalidades.

No dia seguinte – e assim por diante – tudo se repete com demonstrações satisfatórias no jardim da casa. Mas para aqueles que olham  a vida do senhor que vive no jardim da casa 36, só resta lembrar uma frase de Caetano Veloso, que qualquer amigo tagarela já teve a ousadia de cantarolar: “De perto ninguém é normal”.

Cacá Junqueira (6° semestre)