20% das brasileiras afirmam ter sido vítimas de violência doméstica
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BIANCA GIACOMAZZI | CINTIA AZUMA | DEBORA BROTTO | LUÍSA SENA
Todos os dias milhares de mulheres passam por situações semelhantes. Segundo dados divulgados pela pesquisa do DataSenado sobre violência doméstica e familiar contra a mulher, uma em cada cinco brasileiras reconhece já ter sido vítima de violência doméstica ou familiar provocada por um homem. Dentre elas, 78% foram agredidas por companheiros ou ex-companheiros.
Segundo pesquisa de 2013 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 5.664 mulheres são assassinadas de forma violenta a cada ano. Em outras palavras, uma mulher morre a cada 6 minutos. Espírito Santo, Bahia e Alagoas são, respectivamente, os estados com maior número de ocorrências. A cada uma hora e meia, também segundo o Ipea, uma mulher morre vítima de violência masculina no Brasil.
Segundo o psicólogo Oswaldo Antunes de Campos, casos de violência contra a mulher ocorrem em função da sociedade em que vivemos. “Nós vivemos em um país machista, por mais que se fale que muita coisa mudou. A mulher é vista como objeto, sendo que não há nenhuma comoção das pessoas em função de um abuso”, diz.
Por mais que muitos enxerguem tais abusos como uma doença mental ou como um instinto animal do homem, o psicólogo esclarece que a parte emocional do homem é ligada também ao papel da mulher na sociedade. “Pode ser visto como sintoma de uma doença emotiva, mas também tem a facilidade e a impunidade: a imagem da mulher sendo mais fraca, e a facilidade que se tem para fazer tais atos, pois ninguém faz nada. Quando uma mulher é espancada ou violentada, ninguém toma uma atitude, a menos que seja alguém conhecida”, explica.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2012 o número de ocorrências de estupro no país foi de 50.617, número maior que os casos de homicídio doloso com 47.136 ocorrências. O Estado com o maior número de estupros é Roraima, seguido de Rondônia e Santa Catarina.
Violência
O caso de Paty Ayumi Matsuda, hoje com 18 anos, mostra que a violência contra a mulher começa ainda na infância. Aos 12 anos, estava em um ônibus e percebeu a presença de um homem sentado no fundo do veículo. Preferiu sentar distante. “O rapaz levantou e ficou andando pelo corredor, até que parou ao meu lado e perguntou o horário. Eu, mesmo assustada, respondi que eram 8h”, diz.
“Ele colocou uma arma na minha barriga e me mandou ficar sentada. Fez questão de se sentar na janela, para ninguém desconfiar”, conta. O homem colocou a mão na perna de Paty, e sua mochila logo em cima, para que ninguém conseguisse ver o abuso. “Meu olho estava cheio de lágrimas, estava agonizando enquanto ele tentava saber da minha vida. Estava com muito medo.”
Ele abriu a bermuda e disse “coloca sua mão aqui dentro”. Neste momento, uma mulher que a estava olhando deu sinal para o ônibus parar. E, entre a pressa do homem para que a mão de Paty chegasse a ele logo e a porta se abrir, ela levantou e saiu correndo do ônibus numa reação momentânea.
Ao sair do veículo, ela desmaiou no colo da mulher que havia dado sinal e acordou um tempo depois recebendo ajuda da mesma.
A jornalista Luiza Pastor, 57 anos, foi estuprada por um menor de idade em 1976. Com medo de represálias da própria polícia, não registrou boletim de ocorrência. “Estávamos na ditadura e era a época em que estudante de jornalismo da USP tinha mais medo da polícia do que do bandido”, diz.
O incidente ocorreu no escritório em que trabalhava. O agressor entrou na sala com uma arma em mãos. Um segurança do prédio a encontrou minutos depois. Luiza explodiu de nervoso, medo e vergonha. Dias depois recebeu uma intimação para que fosse reconhecer o garoto, já que o segurança havia feito a denúncia por ela. Quando Luiza chegou à delegacia, os policiais estavam comentando sobre o garoto já ter aparecido lá outras vezes e que não tinha jeito: matá-lo seria a solução. Luiza foi contra a morte do garoto, assim como é contra diminuir a maioridade penal. “Tive que ouvir os policiais dizendo que se eu era contra sua morte, talvez tivesse gostado”, desabafa ela.
Como solucionar
São Paulo tem nove Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), localizadas nas cinco regiões da cidade. As DDMs registram ocorrências, investigam e apuram crimes de violência contra a mulher, também realizando encaminhamento jurídico e em processos para exames do Instituto Médico Legal (IML).
Assistente social da 2ª DDM, Maria Auxiliadora de Castro, conta que as mulheres agredidas vêm buscar o atendimento policial como se fosse a única coisa a fazer. “A vítima não tem noção da relação de submissão que ela tem com o agressor, do que ela passou para chegar àquele ponto. Ela precisa de apoio para refletir sobre a própria história.”
Apesar do aumento do número de denúncias, Dora, como é conhecida a assistente social, afirma que muitas mulheres tentam retirar as queixas que fizeram. “A lei não permite que a queixa seja retirada, mas existem muitas que voltam para tentar. Se o caso já gerou um inquérito, ele vai seguir adiante. E somente na presença de um juiz ela irá poder resolver se o agressor deverá ser processado ou não”.
“Muitas delas o fazem em função da relação de dependência com o agressor, ou pelo medo que sentem. Elas sofrem muito e há muito tempo e, como muitas ainda vivem com os agressores, voltam para tentar a retirada a mando deles”, explica a assistente social.
As DDMs têm tanto funcionários homens quanto mulheres, mas quem trabalha no atendimento e na execução do boletim de ocorrência são somente as mulheres.
“O pior inimigo da mulher é a falta de informação. Às vezes, ela se informa com alguém que sabe ainda menos do que ela. É necessário que ela venha para a delegacia, onde vai saber o que fazer e será adequadamente encaminhada.”
Violência psicológica
Medo e vergonha são dois sentimentos comuns entre vítimas de abusos variados. A estudante I., que não quis se identificar, conta que seu ex-namorado, antes delicado e atencioso com ela, transformou-se completamente depois do início da relação entre os dois.
Ciumento, ele exigia que ela não saísse da sala nos intervalos de aula da escola. Quando, enfim, decidiu terminar o namoro, I. passou a sofrer inúmeras ameaças. Seu companheiro a chantageava. “Ele dizia que iria acabar com a minha vida. Não podia arriscar”, conta a estudante.
O ciúme e as ameaças se tornaram tão violentos que a própria escola interviu. “Eu não tinha coragem de explicar tudo o que se passava para os meus pais, mas eles sabiam que algo estava errado. Enquanto isso, a escola fez o que pode”, diz. Ela explica que, em época de provas, por exemplo, ele era colocado em uma sala separada dela. A situação piorou, e logo a escola começou a reter o agressor em sala até que I. já tivesse voltado para sua casa, depois das aulas.
“Chegou num ponto absurdo e ninguém ficava ao meu lado. As pessoas achavam que eu queria estar com ele”, conta. No último dia de aula, houve briga e agressão física. “Ele me agarrou pelo braço de tal forma na frente de todos que fiquei com ainda mais medo.” Ao chegar em casa, com hematomas, seu pai pediu a ela que registrasse um boletim de ocorrência, mas ela relutou e deixou para lá. Depois do término, passou a frequentar terapia.
A vergonha e o medo também podem ser observados em casos mais corriqueiros do dia a dia. Camila Ferrari, hoje com 23 anos, conta que há 5 anos passou por situações de abuso em ônibus e na rua. “Nas várias vezes em que homens mexiam e encostavam em mim no transporte público eu não dizia nada, apenas tentava me afastar.”
Hoje, ela diz não se calar mais. “Há poucos dias passei novamente por essa situação e falei para o homem tirar a mão de mim, que estava me incomodando. O homem me fez parecer uma louca.”