A utopia do Estado Laico no Brasil gera polêmica há 124 anos
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Fernando Turri
Marina Guazzelli
»»» O ano é 2011. A Assembleia de Deus comemora seu centenário. Em celebração, a cantora gospel Lauriete Rodrigues entoa cinco minutos de canto, apreciados por algumas dezenas de pessoas. O culto louva a grandeza do Senhor.
A cena, absolutamente trivial, poderia ser aceitável, não fosse um detalhe. A música ecoou diretamente do púlpito da Câmara dos Deputados, em Brasília. Na época, Lauriete era deputada pelo PSC do Espírito Santo e regia uma celebração da igreja evangélica no Brasil.
Essa confusa mistura não é nova no país. “Os primeiros 389 anos da história do Brasil foram marcados por uma constante confusão entre o Estado e a religião”, afirma Johnny Bernardo, pesquisador do Núcleo Apologético de Pesquisas e Ensino Cristão (Napec). No passado, afirma ele, para que uma pessoa fosse aceita socialmente, ela tinha que pertencer a uma religião – no caso do Brasil, a católica.
Além da questão social, as ferramentas burocráticas do Estado também estavam vinculadas à Igreja Católica. “Nascia um indivíduo, era preciso que fosse batizado na Igreja. As pessoas se casavam, tinha que ser na Igreja. Elas morriam, os registros estavam na Igreja. Nesse sentido, a religião cobria toda a vida de uma pessoa”, completa Andrey Mendonça, professor de filosofia da ESPM-SP.
Somente com a criação de mecanismos civis, como o cartório, que o Estado começou a se tornar independente da Igreja. Foi com a promulgação da Constituição de 1891, a primeira da história da República no País, que o Estado se tornou laico.
O Estado Laico é aquele que garante a ausência de envolvimento religioso em assuntos governamentais, tratando todos os cidadãos igualmente, independentemente de sua religião. Em contrapartida, o Estado Teocrático ou Confessional adota uma religião oficial e suas crenças e dogmas são aplicados a toda a população.
Para Josias Bittencourt, doutor em Direito pela PUC-SP, a completa separação entre religião e Estado é impossível. “Tanto a teoria da união total entre religião e Estado como a teoria da separação absoluta é uma utopia”, argumenta. Segundo ele, todos, desde o nascimento até a morte, têm crenças, e elas interferem na maneira como o homem age na política. “O homem é um ser político, como escreveu Aristóteles, mas também é um ser com crenças naturais”, diz.
Polêmica
Apesar dos 124 anos de separação entre o Estado e a religião, o tema ainda gera polêmica. Alguns legisladores trazem propostas à Câmara que buscam unir aquilo que a Constituição separa.
Idealizada pelo deputado federal João Campos, do PSDB de Goiás, o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 99/11 é um exemplo dessa nebulosa separação. A PEC acrescenta ao artigo 103 da Constituição de 1988 a capacidade de Associações Religiosas de âmbito nacional proporem ações de inconstitucionalidade e constitucionalidade a leis ou atos normativos.
Na prática, grupos como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ou a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil poderão se opor a novas leis, alegando diretamente ao Supremo Tribunal Federal que elas vão contra a constituição.
Igor Rapp, criador da página no Facebook Vamos acabar com a PEC 99/1, acredita que a aprovação da PEC é um retrocesso. “Um dos passos claros para que um grupo chegue a governar um país é dar-lhe poder, e a PEC 99/11 é uma clara tentativa de empoderar grupos religiosos proeminentes”, diz.
Já para o deputado Campos, Presidente da Frente Evangélica Parlamentar no Congresso e autor da PEC, o objetivo é criar ferramentas para que as associações religiosas defendam seus interesses. O parlamentar cita o exemplo do artigo 5o da Constituição, que estabelece, entre outras questões, a inviolabilidade da consciência e da crença, a proteção aos locais de culto e suas liturgias, o ensino religioso facultativo e a imunidade tributária. “Se amanhã nós tivermos alguma lei que viole algum desses princípios [do artigo 5o], quem é que vai ao Supremo para que ele diga que essa lei é inconstitucional?”, pergunta o deputado federal.
No entanto, Rapp analisa essa questão com cautela. De acordo com ele, essa poderia ser uma prerrogativa para que outras leis fossem embargadas. “A natureza dogmática e não inquisitiva das religiões é incompatível com os avanços científicos, principalmente no âmbito da terapia com células tronco”, afirma Rapp, que também é biólogo formado pela Unicamp.
Outro exemplo, é a lei de autoria de Jerônimo Alves, vereador de Florianópolis pelo PRB. Em vigor desde 11 de março desse ano, a lei nº 9.734 torna obrigatória a disponibilização de Bíblias em escolas públicas e privadas da capital. O livro deve estar em lugar de destaque e pode ser distribuído aos estudantes eventualmente.
“A Bíblia é um livro histórico, é um livro de consulta teocrata e qualquer pessoa de outra religião pode ter a possibilidade de conhecê-la. Esse foi o nosso objetivo”, afirma Alves, que também é bispo da Igreja Universal. A lei não define a disponibilização de livros e objetos sagrados de outras religiões.
A existência de projetos e leis envolvendo política e religião pode ser explicada pela predominância de deputados cristãos na Câmara. “Some a bancada evangélica [75 deputados] aos 300 deputados que se declaram católicos, e teremos um congresso predominantemente cristão, com exceção de 1,9% de espíritas”, Johnny argumenta.
Para o pesquisador do Napec, essa maioria traz uma situação conflituosa de interesses que só tende a fragilizar o Estado laico.
Religião como lei
Ainda presente em países no mundo como Arábia Saudita, Afeganistão e Vaticano, o Estado Religioso é fruto de muito debate sobre a falta de liberdade que impõe a sua população. No Estado Confessional, ou Teocrático, como também é chamado, todas ações políticas, jurídicas e policiais estão submetidas a uma certa religião.
“Quando um Estado passa a exigir que seus cidadãos se comportem de acordo com a religião dominante ou estatal, ele fere princípios democráticos, de direitos humanos reconhecidos internacionalmente. Direitos como o de ir e vir, de livre expressão intelectual, cultural e religiosa são severamente prejudicados em países de regime teocrático”, afirma Johnny Bernardo.
O pesquisador cita a Índia que, segundo ele, é um exemplo claro de país que sobrepôs a religião sobre os direitos fundamentais do homem. A divisão da sociedade em castas, com segregação social entre diferentes camadas da população, mostra para Johnny, como o país deixou de lado os direitos humanos em função da tradição religiosa.
Um novo Estado
Utópico ou não, os teóricos entram em consenso de que o Estado Laico ainda não foi devidamente instaurado. “Ainda não conhecemos o que é ser um Estado laico em sua plenitude”, afirma Johnny.
Autor da tese de doutorado “Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?”, Bittencourt acredita no Estado Plural. Esse Estado representaria a pluralidade religiosa que existe no País, reconhecendo a diversidade e os múltiplos costumes, crenças e valores existentes.
Para ele, o Estado Religioso e o Estado Laico não conseguem atender às necessidades multiculturais existentes no Brasil. “São Estados modeladores de ideologias que pretendem construir extremidades opostas antagônicas à realidade social”, escreve em sua tese. Segundo Bittencourt, o Estado Plural seria uma via muito mais realista e menos ideológica a ser implementada.