CARREGANDO

O que você procura

Destaque Jornalismo Investigativo

Problema histórico: vulnerabilidade social torna Vale do Ribeira mais suscetível a impactos de desastres naturais

Compartilhar
Moradores do Vale do Ribeira contabilizam prejuízos depois de enchente em 2014.Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
Sophia Maripensa (3º semestre)

Os desastres climáticos no Brasil aumentaram 250% no período de 2020 a 2023, em comparação com os registros da década de 1990, segundo dados da Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica. Isso significa que milhões de pessoas foram impactadas por episódios como tempestades, chuvas intensas, ciclones e ventos fortes, secas e incêndios. Em São Paulo, a região do Vale Ribeira foi especialmente afetada, com episódios que chegaram a deixar um terço da população de uma cidade desabrigada ou desalojada. 

Uma análise dos dados do Atlas Digital de Desastres no Brasil, da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec/MIDR), sobre os desastres naturais que ocorreram no país de 2019 a 2023 mostra que, dentre as dez cidades que tiveram a maior taxa de população afetada pela falta de abrigo por 1.000 habitantes, três estão no Vale do Ribeira. O destaque vai para Itapirapuã Paulista, onde mais de 34% da população foi desalojada ou desabrigada no período, seguido por Rafard (10,29%) e Capivari (11%). 

Em outubro de 2023, por exemplo, o município de Ribeira registrou cerca de 240 pessoas desalojadas e desabrigadas, representando 7,5% da população local – segundo a Defesa Civil, desabrigados são aqueles que perderam totalmente suas residências e dependem de abrigos públicos, enquanto desalojados são os que, por questões de segurança, precisam deixar suas casas temporariamente, abrigando-se com parentes ou amigos. 

No mesmo período, em Itapirapuã Paulista, os vendavais deixaram mais de 34% dos moradores em situação de emergência. “Estamos falando de um município no sul de São Paulo, uma das regiões mais pobres do estado”, explica Jorge Barboratto, técnico do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). “Uma população sem tanto acesso, seja à informação ou à infraestrutura necessária para lidar com esses eventos.” 

Em todos os casos, os danos materiais incluíram casas destruídas, interrupções no fornecimento de energia, quedas de árvores e bloqueios em estradas vicinais. Segundo Rafael Tiezzi, diretor do projeto Vale do Ribeira Sustentável, o agravamento desses impactos tem relação direta com a precariedade da infraestrutura urbana nos pequenos municípios da região. “A maior parte das cidades foi construída sobre sistemas de drenagem antigos e subdimensionados. As tubulações não dão mais conta das chuvas atuais, que são mais concentradas e frequentes”, explica.

Segundo o especialista, o regime de chuvas mudou, mas a estrutura continua a mesma. “Essas cidades impermeabilizaram áreas sem repensar a vazão da água. Quando o solo não consegue absorver mais, a água escorre mais rápido e se acumula. Isso vira enchente”, afirma.

Vulnerabilidade social

As cidades do Vale do Ribeira também são aquelas que, dentre as dez mais afetadas, têm o maior Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).  O IVS é uma métrica que avalia o grau de fragilidade de um município com base em indicadores como renda, moradia, educação, saneamento básico e acesso a serviços públicos. Cidades com altos IVS tendem a apresentar maior exposição aos riscos e menor capacidade de resposta e recuperação diante de eventos extremos.

”A vulnerabilidade é o grau de quanto um indivíduo ou grupo pode ser afetado por um desastre. Ela pode ser física, econômica ou social, e geralmente está presente em áreas com maior concentração de pessoas em risco”, explica Barboratto. Itapirapuã Paulista, por exemplo, possui um IVS de 0,427 – o índice vai de 0 a 1 e, quanto mais alto, mais vulnerável está a cidade – e registrou, em novembro de 2023, vendavais que desalojaram 148 pessoas e desabrigaram outras quatro. Embora o número absoluto pareça pequeno, ele corresponde a 34,5% da população total do município, segundo dados do IBGE.

Em Ribeira, que tem um IVS de 0,316, chuvas intensas em outubro de 2023 provocaram o isolamento de 400 famílias na zona rural e a evacuação de mais de 60 residências no perímetro urbano. Em Sete Barras, que tem um IVS de 0,303, as chuvas de fevereiro de 2021 deixaram 516 pessoas desalojadas ou desabrigadas, a maioria no bairro Vila São João. A infraestrutura precária das estradas e sistemas de drenagem foram apontadas nos relatórios da Defesa Civil como fator agravante para os prejuízos registrados. 

A ausência de planejamento urbano contínuo também agrava o cenário. “Essas comunidades crescem sem plano diretor, sem regras para áreas permeáveis, sem rede de drenagem adequada. A água, então, busca o caminho natural e muitas vezes esse caminho é dentro da casa de alguém”, afirma Tiezzi.

Ele também  aponta a falta de adaptação climática como uma falha crítica. “Os municípios sabem onde estão os problemas. Há dados públicos, como o Adapta Brasil, que mostram as áreas mais vulneráveis. Mas poucos fazem planos de adaptação climática porque essas obras são caras, longas e politicamente impopulares. E infraestrutura urbana, como drenagem, é obra que não dá voto. Só dá transtorno visível”.

Sistema de alerta e falhas institucionais

Segundo Barboratto, os desastres que mais causam danos no Brasil são as inundações e os movimentos de massa – como deslizamentos de terra. O sistema de alerta do órgão foi criado justamente para tentar monitorar e alertar sobre esses tipos de eventos muito característicos do país. No entanto, ele também faz um alerta: “O sistema institucional ainda está em processo de consolidação e muitas defesas civis municipais nem sequer possuem computadores ou veículos próprios”.

Ele afirma que há dificuldades operacionais. “Não basta instalar pluviômetros. A manutenção é cara, e muitas vezes não há orçamento para isso”, conta. “Só o Cemaden tem mais de 3.500 pluviômetros, mas ainda é insuficiente para cobrir adequadamente o país.”

Além disso, Barboratto relata um exemplo recente e preocupante: “No começo deste ano, em Iporanga, houve um desastre no distrito de Serra. A chuva foi detectada apenas após o ocorrido, porque não havia equipamentos de medição suficientes na região. A população não foi alertada a tempo. Se já houvesse preparo comunitário, talvez tivessem sido menos afetados.”

O técnico ainda defendeu a abordagem chamada “sistema de alerta centrado nas pessoas”, na qual o conhecimento para reagir a desastres é compartilhado com os moradores. “Isso não é transferir a responsabilidade do Estado para o indivíduo, mas preparar a população para agir quando o Estado não conseguir chegar a tempo.”

Para Tiezzi, também falta à população entender por que essas obras são necessárias. Muita gente só vê o transtorno e não percebe que aquele canteiro aberto pode evitar uma tragédia futura. Isso é uma falha de comunicação, mas também de educação, é um problema estrutural na forma como o Brasil pensa a gestão pública”.

Metodologia

A metodologia desta reportagem baseou-se na coleta e análise de dados sobre desastres naturais ocorridos entre 2019 e 2023 em cidades do estado de São Paulo, com foco posterior na região do Vale do Ribeira. Utilizamos informações do Atlas Digital de Desastres Naturais para identificar e quantificar desabrigados, desalojados e o número de desastres por município, complementando com dados populacionais do IBGE (2024) para calcular taxas proporcionais de impacto. Esses dados foram organizados e analisados em planilhas, permitindo o ranqueamento das cidades mais afetadas. Cruzamos ainda as informações com o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) de 2010, do Ipea. A investigação foi aprofundada com a busca por fontes, especialistas do Ipea, moradores da região e análise de reportagens e documentários, com ênfase nos eventos de Eldorado e Iporanga em 1997, a fim de compreender os fatores que tornam o Vale do Ribeira especialmente vulnerável.

Tags: