Praticantes do poliamor defendem a liberdade de afeto na modernidade
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Carolina Cunha
Gustavo Torniero
Pedro D’el
Thayane Matos
»»»“Enquanto a vida vai e vem, você procura achar alguém que um dia possa lhe dizer: quero ficar só com você”, cantou Renato Russo em “Antes das Seis”. Mas talvez ele não estivesse completamente certo. O que é o amor? Afeto, sexo, companheirismo? Ao longo da história, o conceito de amor foi encaixado em diferentes formas de relacionamentos, relações que mudaram no decorrer do tempo.
O antropólogo e psicanalista Eduardo Benzatti afirma que as pessoas estão mais propensas hoje a buscar coisas novas e fugir dos rótulos. E é aqui que entra a contramão do que Renato Russo disse. “Quero ficar só com você” é uma frase que nem sempre faz sentido.
O tema é tabu, mas, para o pesquisador Christopher Ryan, autor do livro “No Princípio Era o Sexo”, se não tivéssemos uma cultura imposta, nossa orientação sexual seria composta de diversas relações paralelas.
São Paulo concentra grande parte das pessoas que querem liberdade nos relacionamentos no Brasil. Alfredo, Olívia e Ariel, Juliany e Pedro, Maíra. O que eles têm em comum? Todos encontraram uma forma de amar as pessoas. Longe da monogamia.
De Congonhas até a Barra Funda
Olívia Lágua e Ariel Schicchi se relacionam há mais de um ano. Estudaram no mesmo colégio, mas não conversavam muito. Foi depois de uma viagem com amigos que o interesse surgiu. Logo se apaixonaram. Mas se dizem livres. Não se prendem a amarras sociais.
Eles se amam, mas nem por isso se privam de se relacionar com outras pessoas, e isso não diminui o que sentem um pelo outro, segundo eles próprios. Há níveis diferentes de amor. Eles construíram uma conexão tão forte que entendem a dificuldade de ter o mesmo nível de relacionamento com outras pessoas. Olívia mora perto do aeroporto de Congonhas. Ariel, na Barra Funda. Às vezes, ele atravessa a cidade três vezes em uma semana para vê-la. Os dois se consideram verdadeiramente companheiros.
A suave voz de Olívia demonstra sua sensibilidade ao falar de seus relacionamentos e da vida. O apreço pela arte, pela poesia e pelo curso de filosofia que faz na USP colaboram para um conjunto de fatores que moldam sua personalidade.
Ariel, centrado e calmo, estudante de psicologia e um grande entusiasta da filosofia, também parece refletir os mesmos aspectos de sua companheira, justificando a forte conexão entre eles.
A regra nesse tipo de relacionamento é não ter regra. É uma construção diária de diálogos. Mentir ou omitir o que sente é muito grave. “Eu sinto como se eu estivesse em um namoro fechado e descobrisse que ele estava tendo um caso”, ilustra Olívia, ressaltando ser uma dor terrível quando isso acontece.
Ariel diz que as crises normalmente são muito fortes, mas a partir do momento em que elas são resolvidas, o relacionamento se fortalece e a confiança aumenta. “A partir dessas crises nós sabemos nossos limites, desejos, como a gente se vê com o outro”, ele explica.
Ambos não gostam de ser enquadrados em esquemas e estereótipos.
No Edifício Copan, República
“Você não é louco, apenas não se adequa a isso.”
Há 30 anos, Alfredo Nora ouviu essa frase de um psiquiatra por ser tachado de louco pelos alunos da escola. Ainda hoje a recorda com um sorriso no rosto, como se concordasse. Aos 39 anos, vive o que chama de amor pleno, continuando sua trajetória como uma pessoa fora dos padrões estabelecidos pela sociedade. Por ser livre, agora é conhecido pelos amigos como Alfreedom.
Mas o que é amar de forma plena? Para Alfredo, é apenas amar. Ele diz que não devemos nos limitar à simples atração. Não existe hétero e nem homossexual, diz, só o amor. Mas é necessário que uma pessoa se sinta realmente ligada à outra para que o vínculo não seja apenas físico. A plenitude desta forma de amar é enxergar o que os parceiros trazem, o que são e como atingem os outros.
Alfredo chegou a essa forma de amar por um simples motivo: ciúmes. Foi esse sentimento que causou um sofrimento imensurável a ele. Depois de pensar no que isso significava, chegou à conclusão de que o ciúmes nada mais é do que “odiar o amor do outro”. Então concluiu que o amor é algo inerente ao ser humano e que “ninguém tem culpa do meu amor”, completa Alfreedom.
Foi aos vinte e tantos anos que Alfredo resolveu abrir seus horizontes e encontrar essa forma diferente de se relacionar. “Gosto de pensar que somos uma família de pessoas que se amam.”
A crítica que faz é de que as pessoas costumam procurar outras para preencher uma ausência, e assim depositam no outro a responsabilidade de completar um vazio que na verdade é pessoal. “Quando a pessoa se preenche do seu próprio amor, ela não precisa do outro. Aí ela já é plena”, conclui.
Da Vila Madalena a Diadema
Ele, um homem simpático, camisa verde, cavanhaque e cabelo crespo. Ela, uma mulher sorridente, blusa azul escura, pele negra e um brinco maior que o outro. São Pedro Calejon, mais conhecido pelos íntimos como Calê, e Juliany Bernardo, a popular Jujuba.
Os dois formam um típico casal paulistano, que de típico não tem nada. Pedro, 27 anos, nasceu em São Paulo em plena avenida Paulista. Por esse fato, é chamado carinhosamente pela companheira de paulistiniano.
Há mais ou menos dois anos, seu último relacionamento monogâmico acabou por conta de uma descoberta: o poliamor. Através de uma rede social, Calê se deparou com o documentário “Poliamor”, de José Agripino. E o que era apenas uma curiosidade acabou se tornando uma nova filosofia de vida.
“Eu sempre me apaixonei por outras pessoas estando num relacionamento monogâmico. Eu buscava em mim um ideal que não era meu: amar uma pessoa só, estar com uma pessoa só.” A partir dessa conclusão, se transformara em um poliamorista.
Um ano após sua decisão, Calê conheceu um novo amor, ou pelo menos um deles. Pelo Facebook, entrou no grupo Poliamor São Paulo, onde pediu assistência à administradora: a diademense de 21 anos Juliany.
A estudante de Jornalismo se interessou por acaso, num bate papo online. “Quando eu descobri o poliamor, foi instantâneo. Eu nunca tinha pensado a respeito, mas quando eu soube o que aquilo significava, foi um identificação imediata”, disse a jovem.
O casal já está junto há 10 meses, contudo não são os únicos nesta rede. Cada um tem mais um namorado do sexo oposto, apesar de ambos se declararem pansexuais, ou seja, ter atração por outras pessoas independentemente do gênero delas.
Em relação ao ciúme, os apaixonados o dispensam prontamente e classificam seus sentimentos com outra palavra: compersão. “É o termo que a gente usa, definido como o oposto de ciúmes,” explica Calê.
Compersão significa “ficar feliz pelo seu companheiro estar com outra pessoa”. É exatamente assim que Juliany descreve o poliamor.
Já na Paulista
Pisciana, apaixonada por música e filmes, tradutora audiovisual, Maíra Mee, aos 37 anos, defende a não monogamia. O início de sua vida amorosa foi com um homem, aos 15 anos, mas, no ano seguinte, acabou percebendo que não era o que queria, e talvez nem quisesse uma pessoa só.
O cabelo curto e cacheado balança quando é movido pelas mãos agitadas. Os olhos castanhos mostram concentração no assunto que aborda.
Foi no seu segundo relacionamento que começou a experimentar uma relação não monogâmica, e a confusão a tomou. Não existem modelos. Filmes, literatura, músicas, nada disso explica como é um amor livre. Ela lembra que começou a se interessar inteiramente por garotas aos 21 anos. “Os garotos eram mais legais para serem amigos”, suspira.
No primeiro namoro com uma garota, Maíra precisou explicar sua forma de relacionamento: o aberto. A companheira aceitou, mas mesmo assim não deu certo. Sem o manual que a cultura proporciona aos relacionamentos monogâmicos, Maíra não soube o que fazer.
Entretanto, essa desorientação acabou em 2013, quando conheceu o grupo de Relações Livres, ou simplesmente RLi. Essa comunidade é composta por pessoas que estudam a história da monogamia e da não monogamia – que os adeptos consideram diferente da poligamia, relação em que o mais comum é o homem ter mais de uma mulher. Foi aí que o pensamento crítico surgiu. A crítica ao tipo de relacionamento padrão da sociedade: a família como forma de manter bens e “gerir a vida de outra pessoa”, diz Maíra.
A tradutora conta que a diferença da RLi em relação às outras formas de relacionamento é que ela não se limita à prática. Envolve também o histórico das relações na sociedade. É um grupo militante, que busca, além de tudo, valorizar a mulher. Em muitos momentos da história da humanidade, as moças eram trancadas em casa e tudo o que podiam fazer era cuidar da residência e se manter longe de outros homens.
Hoje, essa necessidade está sendo superada; se temos afeto suficiente para viver mais de uma história ao mesmo tempo, questiona, então por que nos censurarmos?