O novo jornalismo criminal brasileiro: da construção da manchete ao impacto social
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No 20°Congresso da Abraji, jornalistas discutiram as mudanças na cobertura de grupos armados nas últimas décadas (Foto: Amanda Gouvea/Abraji)
Sophia Maripensa – 4º semestre
O jornalismo criminal brasileiro tem passado por uma mudança de rota na última edécada. Antes limitado a manchetes que destacavam sangue, terror e estigmas, ele começa a buscar agora uma cobertura mais ética, analítica e comprometida com a verdade estrutural por trás dos crimes. Mas a transição de uma abordagem sensacionalista para uma apuração mais responsável tem exigido novas metodologias, maior cuidado narrativo e um senso ampliado de justiça.
A transformação ficou evidente nas mesas do 20° Congresso da Abraji, que aconteceu entre 10 e 13 de julho na ESPM-SP e reuniu repórteres, editores e especialistas para discutir os desafios de cobrir violência em um país onde o crime organizado, a violência de gênero e o autoritarismo institucional ainda se impõem como ameaças reais à sociedade e ao exercício do jornalismo.
Durante a mesa “Como cobrir feminicídios sem clichês e sensacionalismo?”, as jornalistas Hellen Lirtêz (Defensores Ambientais da Abraji), Raissa França (Eufêmea), e Mariama Correia (Agência Pública), compartilharam experiências sobre como o cruzamento de estatísticas, registros públicos e sistemas de informação pode revelar padrões ocultos, negligência do Estado e perfis estruturais da violência. O uso de dados tem se tornado uma das ferramentas mais potentes na cobertura de crimes, especialmente feminicídios, ajudando a romper com narrativas pautadas apenas por fontes policiais.
O debate deixou claro que reportar casos de violência contra mulheres exige mais do que relatar o fato: é preciso garantir que a vítima não seja revitimizada pela narrativa. Elas deram dicas como: evitar descrições gráficas desnecessárias, não divulgar nomes ou imagens sem autorização e respeitar o luto das famílias são alguns dos pontos-chave para uma cobertura ética. A escolha de fontes, a construção da manchete e até mesmo o uso de adjetivos pode ainda reforçar estigmas históricos.
Durante outra mesa intitulada “PCC e outros grupos armados: três décadas de jornalismo e mudanças na cobertura”, os jornalistas Fatima Souza (SBT), Marcelo Godoy (Estadão) e Ricardo Moura (O POVO), discutiram, com a mediação de Cecilia Oliveira (The Intercept Brasil e Fogo Cruzado), a evolução da cobertura sobre o PCC e outros grupos armados, relembrando como o jornalismo passou de uma abordagem meramente reativa e sensacionalista para investigações mais complexas, que buscam entender o funcionamento dessas facções, suas conexões com o poder público e seus mecanismos de expansão. A segurança dos jornalistas, por outro lado, torna-se cada vez mais uma pauta urgente, diante de ameaças, perseguições e até assassinatos que colocam a liberdade de imprensa em risco.
Ainda sobre como se fazer a cobertura de casos criminais, na mesa “Como fazer jornalismo infiltrado: O caso do repórter secreto”, o jonalista Eduardo Faustini, conhecido como Repórter Secreto, contou as suas experiências. Durante anos, ele atuou de forma infiltrada, sem revelar sua identidade, para expor redes de corrupção, grupos de extermínio e esquemas criminosos. Sua trajetória levanta uma das principais tensões do jornalismo investigativo: até que ponto vale esconder-se para revelar a verdade? Faustini afirmou que o anonimato era necessário para sua proteção e para o sucesso das pautas, mas reconheceu os impactos emocionais e profissionais do método. Agora fora do anonimato, ele reflete sobre os dilemas éticos e os limites da exposição. A mediação foi de Rodrigo Alves, jornalista e autor do podcast “Vida de Jornalista”.
Os debates deixaram evidente que o jornalismo criminal atual é um campo em disputa. De um lado, a pressão por audiência ainda alimenta práticas sensacionalistas; de outro, cresce uma geração de jornalistas que entende seu papel como agente de transformação social. A reinvenção não é apenas técnica, e exige tempo, preparo e, acima de tudo, compromisso com o público e com a verdade.