Neolinguagem: o debate acerca da busca por mais inclusão na língua portuguesa
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Juan Cuela (1º semestre)
Como parte da busca por identidade e autoconhecimento, cada vez mais pessoas deixam de se sentir identificadas com os gêneros masculino ou feminino. A não-binariedade, juntamente com a transgeneridade como um todo, tem ganhado cada vez mais visibilidade no mundo, contribuindo assim para a propagação da ideia de que o gênero é uma particularidade de cada indivíduo e não pode se resumir a apenas duas definições – homem e mulher – estereotipadas e baseadas em características específicas associadas à masculinidade e à feminilidade.
No mês de setembro, dois importantes acontecimentos geraram inúmeros debates sobre o tema: Sam Smith, cantor inglês, informou aos seus seguidores que passaria a atender ao pronome “they”, utilizado pelas pessoas não-binárias falantes da língua inglesa. Posteriormente, o dicionário Merriam-Webster, um dos mais importantes do idioma, anunciou que incluirá o “they” em sua lista de pronomes.
A busca por representatividade de pessoas trans e não-binárias ocorre em vários campos sociais e científicos; isso inclui a linguagem. Enquanto vários idiomas possuem naturalmente suporte para a neutralidade dos mesmos, a língua portuguesa estabelece em sua gramática apenas a flexão dos dois gêneros binários, excluindo, portanto, as pessoas que não se encaixam em nenhum dos dois. Por isso, desde o início desta década essas pessoas buscam desenvolver uma alteração coesiva na linguagem para que se sintam acolhidas.
Para Marcos Maurício, professor de Linguagem e de Espanhol da ESPM-SP, essa tentativa de alteração parte de vários campos diferentes da sociedade. “O português e o espanhol são línguas muito machistas, no sentido de que ‘o homem é aquele que vem primeiro’. Se houver um grupo de dez mulheres e um homem, será utilizada a expressão ‘todos vocês’ para se referir a esse grupo, e não ‘todas vocês’. Então começou-se a pensar: será que não existe uma outra maneira de se dizer isso? Será que não pode haver uma linguagem capaz de incluir as pessoas independente do gênero com o qual elas se identificam? Seria benéfico?”
Uma das primeiras formas difundidas de neutralização do gênero das palavras em português foi o uso da letra X no final delas (ex. “Elx é bonitx”). No entanto, palavras alteradas dessa forma mostraram-se como um obstáculo para pessoas disléxicas e deficientes visuais que utilizam leitores de tela, além de serem impronunciáveis.
Com o passar do tempo, vários outros sistemas gramaticais foram formulados, tendo o sistema Elu ganhado um maior destaque. A principal norma desse sistema consiste na utilização da letra “E” como terminação dos adjetivos (ex. “branques” no lugar de brancos e “lindes” no lugar de lindos). O pronome “elu” substitui ele/ela, “su” substitui seu/sua e “mi” substitui meu/minha. “Algumas pessoas já estão escrevendo assim o tempo inteiro, não em textos acadêmicos, mas sim em textos do cotidiano como no Facebook ou em mensagens de texto”, assevera Marcos.
Vale frisar que é possível neutralizar as frases sem precisar utilizar o sistema Elu, por exemplo, ao empregar “essa pessoa” em vez de “ele” ou “ela”.
Por ser uma proposta de mudança radical da norma padrão da língua portuguesa, esta enfrenta uma enorme resistência de vários grupos sociais. Entre os usuários do Twitter que fazem parte da comunidade LGBTQ, a discussão é constante e divide opiniões, como se pode ver a seguir:
para “es manes”:
o pronome masculino já é neutro
a sua linguagem de x/e/@ exclui semi-analfabetos, disléxicos, autistas, downs, cegos, surdos e outros pra incluir 0,001% da população de uma bolha que resolveu que pode inventar regra de linguagem
O PRONOME MASCULINO JÁ É NEUTRO
— laila o bombom de cupuaçú (@AKlRAFUDO) October 18, 2019
Se a linguagem neutra não fosse abordada pelo movimento trans, todo mundo estaria adorando.
Pq n se trata apenas de garantir respeito a quem não se identifica com pronomes masc ou fem, mas também de combater o machismo na língua.
— Íris ☭ (@Maconhiris_) 21 de outubro de 2019
se o pessoal que fica a todo custo aqui no twitter tentando fazer o pessoal engolir o uso de “linguagem neutra” (como se na língua portuguesa já não existisse uma) usasse todo esse empenho pra ajudar transgêneros marginalizados, em situação de rua ou na prostituição……
— jessica ????☭ (@rebeIgirII) October 18, 2019
essa “linguagem neutra” que vocês tanto forçam é desnecessária num ponto que eu não consigo nem expressar
se alguém estuda português no mínimo vai entender que TODOS já é um pronome INDEFINIDO, que quando usado nesse contexto não se resume só ao masculino mas sim aos dois gêneros https://t.co/aRpdwLXYDE— se meu nome é letícia por que eu não sou alegre? (@textinglet) October 17, 2019
na minha opinião, ninguém é obrigado a adotar a linguagem neutra elitista que só existe aqui no twitter, usar elu delu etc. mas a partir do momento em que você se recusa a ter o mínimo de respeito e usar os pronomes de uma pessoa trans (ela/dela, ele/dele) você passou da linha.
— grimes dentro do freezer do pé de fava (@lustforgab) 26 de outubro de 2019
A língua é viva e, portanto, serve às pessoas que o falam. Por isso, é comum que o idioma se adapte de acordo com as necessidades das pessoas e com as mudanças da sociedade. “Alguns gramáticos vão falar que isso é um absurdo, outros vão falar que é necessário. As políticas linguísticas estão pensando muito nisso, em como essa linguagem inclusiva pode entrar na nossa linguagem do nosso dia a dia, tanto do português quanto de outras línguas”, afirma o professor. Embora a busca pela aceitação popular esteja longe de terminar, cada vez menos estranha a linguagem neutra aparentará ao passo que mais pessoas a incorporarem ao vocabulário.