“Me deixem cantar o fim”
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Elza Soares lança <em>Planeta Fome</em>, o terceiro álbum de uma série de discos indiscretamente políticos nos quais o tom rasgado de sua voz reforça denúncias de cunho social
Catarina Bruggemann
<a href=”http://jornalismosp.espm.br/wp-content/uploads/2020/02/Elza-Soares-por-Daryan-Dornelles-3.jpg”><img class=”size-medium wp-image-31840″ src=”http://jornalismosp.espm.br/wp-content/uploads/2020/02/Elza-Soares-por-Daryan-Dornelles-3-206×300.jpg” alt=”” width=”206″ height=”300″ /></a> Elza Soares em novo álbum que mantém temática de cunho social. Foto: Divulgação
Nossa história começa em 1953, há 66 anos, no dia em que Elza Soares descobriu que cantava. Na época, em uma situação de bastante pobreza, era uma mulher que fazia o que podia para arranjar um dinheiro cá e lá. A coisa estava feia. Seu filho mais velho, João Carlos, estava bastante doente, e Elza, com cerca de vinte anos na época, já havia perdido dois filhos por doença e desnutrição.
Apesar do sonho de ser cantora, nunca teve o apoio da família. Seu marido, Alaordes, dizia que aquilo não era vida para a mãe de seus filhos, mas ela não estava disposta a ver mais um filho morrer. Então, se inscreveu para o programa “Calouros em Desfile”, apresentado por Ary Barroso na rádio Tupi, um sucesso de audiência desde a década de 1930.
Para ganhar o prêmio, uma quantia razoável de dinheiro, primeiramente, o intérprete teria que não ser gongado, e depois atingir a nota cinco. O som do gongo significava desclassificação. Foi a primeira apresentação pública de Elza. Disseram-lhe para “ir bonita”, mas mal tinha traje para a ocasião. Pegou uma roupa da mãe e adaptou-a a seu corpo de menos de 40 quilos com alfinetes.
Sua figura esguia e mal vestida foi recebida com risos e deboche quando subiu no palco. Ary, popular por causar certo constrangimento com comentários maldosos contra os calouros, não perdeu a oportunidade:
“O que você veio fazer aqui?”
“Eu vim cantar!”
“E quem disse que você canta?”
“Eu, Seu Ary.”
“Me diz uma coisa, de que planeta você veio?”
“Do mesmo planeta seu, Seu Ary.”
“E qual é o meu planeta?”
“Planeta Fome!”
Com esse diálogo e sua performance da música<em> Lama</em> – interpretada com seu timbre rasgado que marcou a música popular brasileira –, Elza calou e chocou a plateia e Ary Barroso.
Muitas fomes
Com essa história, Elza Soares anunciou o 34º disco de sua carreira: <em>Planeta Fome</em>, o terceiro álbum de uma série de discos indiscretamente políticos. Em <em>A Mulher do Fim do Mundo</em> (álbum que lhe rendeu o Grammy Latino de Melhor Álbum em 2016) e <em>Deus é Mulher</em>, a cantora chamou atenção pelas letras fortes de denúncia à violência contra a mulher e temáticas femininas sobre uma perspectiva bastante política.
Elza Soares é uma figura emblemática para a música brasileira. Com seu timbre de voz que remete muito ao jazz, se consolidou como cantora de samba, mas sua trajetória passou por momentos duros e de bastante sofrimento. Os dados em relação à sua idade são bastante imprecisos. Nem Zeca Camargo, que biografou a cantora em um livro lançado pela editora Leya em 2018, conseguiu cravar seu ano de nascimento, mas sabe-se que seu primeiro casamento aconteceu quando era ainda uma criança, com mais ou menos 13 anos (idade registrada na certidão de casamento, mas não se sabe se realmente era essa a idade da cantora). Teve seu primeiro filho com 14 anos. “Eu sabia que ele era meu filho, mas era mais como um boneco para eu brincar”. Foram sete filhos em seu primeiro casamento. Perdeu três. E ficou viúva muito cedo.
A carreira de Elza deslanchou entre o final da década de 1950 e o início de 1960, quando gravou seu primeiro disco, <em>Se acaso você chegasse</em>. Entre 1960 e 1970, lançou 14 álbuns. Nesse período, a cantora se envolveu com o jogador de futebol Garrincha, com quem viveu durante 17 anos, seis deles exilada por conta da ditadura militar, O casamento terminou por conta das agressões físicas que ela sofreu e pelo alcoolismo do jogador.
“Sacode a poeira e dá a volta por cima”
“Eu quero cantar”. A fala de Elza reitera constantemente esse desejo. Apesar de ter passado períodos de bastante depressão que fizeram com que cogitasse encerrar a carreira, voltou pela música. Como quando fez uma parceria com Caetano Veloso, para o álbum<em> Velô</em> (1984). “Encontrei o Caetano, ele me deu a chance de gravar <em>Língua </em>e voltei a cantar, pois até então não tinha mais esperança”.
Foi premiada pela BBC em Londres em 2000 como Melhor Cantora do Milênio e desde então vem lançando álbuns marcados por suas renovações estéticas: <em>Do Cócciz até o Pescoço, Vivo Feliz, A Mulher do Fim do Mundo, Deus é Mulher </em>e <em>Bacurau Planeta Fome</em>. Mas diz que não tem um favorito: “Eu gosto de todos. Todos que eu faço é com muito carinho para eu cantar.”
Confira a seguir a íntegra da entrevista que Elza Soares concedeu à Plural.
<em>Planeta Fome </em>é o terceiro álbum de uma série que nos fez redescobrir Elza Soares, com posicionamentos políticos mais claros.
<em>Planeta Fome </em>é o planeta que continua com a mesma fome. Há 66 anos , eu falei que eu morava no planeta fome, que eu vinha do planeta fome, que era o mesmo planeta do Ary Barroso. Mas eu pensava que a fome era só de comida, quando eu descobri que é fome de tudo. É fome de saúde, nós temos fome de amor, que é triste, nesse país que não se tem mais amor. As pessoas estão muito esquecidas. Adormecidas. Fome de cultura, fome de tudo. Esse é o <em>Planeta Fome</em>, que continua com mais fome ainda.
Como aconteceu essa virada de Elza Sambossa, ou Do cóccix até o Pescoço, para Elza Mulher do Fim do Mundo?
Eu sempre gostei de tudo. Eu gostava de cantar. Eu cantei <em>Língua </em>com o Caetano, cantei Ella Fitzgerald… Eu sou uma cantora que não tem rótulo. Não gosto de rótulo, eu gosto de cantar. E cantar pra mim é cantar tudo que há de bom. Sem rotular, tá?
Como você chegou a essa estética experimental de Planeta Fome?
<em>Do Cócciz até o Pescoço </em>já tinha rap, no disco Vivo Feliz era só DJ… Eu já venho fazendo isso há muito tempo cantando, buscando, seguindo uma linguagem nova com a garotada. Essa juventude que não tem amparo, não tem ninguém para falar para eles, para falar com eles, para estar junto deles. Essa é a minha linguagem sempre.
Como você se sente sobre trabalhar com artistas mais jovens? Como Edgar, o pessoal das Bahias e a Cozinha Mineira, que fez o show no Rock in Rio com você, Kiko Dinucci…
Eu me sinto muito bem quando se trata desses artistas. Eles são ótimos e aprendo muito com eles.
Sessenta e seis anos depois do episódio no programa do Ary Barroso, qual é o significado de <em>Planeta Fome</em>?
Eu achava que era só comida, mas não é. É planeta fome de tudo, de cultura, de saúde, de respeito, de paz, de harmonia, de amor. Acontece que o povo tá adormecido. Eu não vejo mais o povo na rua, não vejo mais nada. Acabou. Mas a fome continua, continua mais forte ainda.
Por que lançar o <em>Planeta Fome</em>, álbum que é forte por sua temática e pela ideia que remete de fomes que vão além da falta do que comer, em 2019?
Estou repetindo o que falei no programa do Ary Barroso há tantos anos: a fome existe, eu vivo no planeta fome. Não estou inventando.
Você acha que essas fomes vão acabar?
Eu canto a fome. Sei que ela existe. Mas pelo tempo que venho cantando e contando a fome não sei se ela vai acabar. E isso seria tão fácil… o Brasil é muito rico.
Como foi a escolha das músicas que entraram no disco?
Eu fui escolhendo, cara. Fui escolhendo, fazendo repertório… Isso daqui dá, isso daqui não dá… E cheguei à conclusão que o Planeta Fome é isso daí que está sendo cantado. Você escutou?
Sim, achei fantástico.
Tá muito bom, não tá?
No disco você retoma a música <em> A Carne</em>. Por que você trouxe essa referência para o disco e por que ressignificá-la?
Eu acho que a carne negra nunca foi de graça. Ela já sofreu muito. Chega de massacre de negros, chega de massacre com pobres. Chega, chega! O que não valia nada hoje vale uma tonelada. Por favor, é isso que eu quero. Eu peço de joelhos.
Você tem uma música favorita no disco?
Não, todas são favoritas.
Você reforça em diversas falas o seu desejo de cantar. Inclusive em <em> Mulher do Fim do Mundo</em>. Você já foi impedida de cantar?
Eu já fui impedida de cantar sim: pela sorte, pela vida, pelas coisas que me aconteciam. Até que encontrei o Caetano e ele me deu a chance de gravar <em>Língua</em> e voltei a cantar, pois até então não tinha esperança mais. Já tive vontade de parar, mas agora não.
Como você vê o cenário da arte em 2019?
Muito forte. Só isso. Muito bonito e muito forte.
O que você mais gosta de escutar?
Meu amor, eu gosto de tudo, minha paixão. Eu gosto de tudo que está sendo feito. Tendo liberdade para falar, eu amo. Cabô.
Olha, eu quero um artista para dizer: “esse aqui é indicado pela Elza Socares”. Vou recomendar o <em>Planeta Fome</em>, lógico. Tem que ser o <em>Planeta Fome</em>. Vamos ficar com fome! Vamos alimentar esse país que está dodói. Nosso Brasil está com gripe. Vamos acabar com a gripe deste país, vambora, gente! Mulheres, cadê vocês?
Ah, mas tem bastante mulher compondo agora.
Lógico, a gente chama todo mundo. Estou chamando a mulherada toda, não só quem está compondo, não. Negras, brancas. Eu quero as mulheres fortes. Mulheres unidas jamais serão vencidas!
Você não costuma revelar sua idade, por quê?
Não! Não falo. Eu não revelo idade. Eu sou atemporal. Eu não tenho idade.