Reportagem mostra o pior de 1968
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Por Fernanda Baddini
»»»“Linda, terrorista linda, vem cá me dar um abraço! Terrorista, por que você está aqui? Você é linda”. Essa foi a recepção que a jornalista Rosemeire Nogueira, 71, ex-presa política, recebeu das detentas ao chegar no presídio de Tiradentes, durante a ditadura militar. A abordagem marcou um período de alívio para quem havia ficado mais de um mês sob o domínio do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Ceder o apartamento para sediar reuniões de grupos de oposição ao governo foi o motivo da prisão.
A Por volta da meia noite do dia 4 de novembro de 1969 Rose se dirigiu à cozinha para beber um copo de água quando foi surpreendida pela campainha. “Levei um susto. A hora que eu abri a porta veio aquele monte de cara com revólver dizendo que eu e meu marido estávamos presos”, conta. A denúncia veio de um homem que, de tanto ser torturado, entregou o casal de jornalistas e acompanhou os policiais na noite da prisão.
O desespero começou quando ameaçaram levar o filho da jornalista, com 33 dias de vida na época, a um abrigo. “Me ameaçaram dizendo que usariam de violência”, lembra. Ela conta que depois de enfrentar os militares, levaram seu marido ao Dops e a mantiveram amarrada por toda a noite a uma cadeira na sala de casa. Na manhã seguinte ela entregou o bebê à sogra e foi presa.
O acontecimento fez parte da forte repressão política que se instalou no Brasil com o decreto do Ato Institucional no 5, um ano antes, em 1968. Mas a onda de violência e censura não fazia parte apenas da vida dos brasileiros. Os anos 1960 foram marcados pelo surgimento de uma série de ditaduras militares em vários países da América Latina. Segundo a historiadora Cássia Maria Baddini, além da repressão, da violência e da perseguição política, os regimes tiveram um elemento em comum, que foi o apoio do governo norte americano.
Argentina, Peru, Chile, Uruguai, Paraguai e Guatemala viviam ou estavam prestes a enfrentar a instauração de regimes ditatoriais repressivos em períodos próximos a 1968. Em sete anos de governo militar, cerca de 30 mil argentinos foram mortos no país; no Chile o número sobe para cerca de 40 mil.
Nada foi por acaso. Houve, em 1959, a vitó- ria de um movimento guerrilheiro armado em Cuba, liderado por Fidel Castro – a chamada Revolução Cubana. A derrubada do governo e a instalação de um regime socialista surpreendeu e preocupou fortemente os Estados Unidos, que viam o capitalismo sendo ameaçado. “Os norte-americanos temeram que aquele modelo vitorioso se espalhasse para outros países da América Latina. Então não é por acaso que em 1959 acontece a revolução em Cuba e nos anos seguintes surgem ditaduras militares apoiadas pelos EUA”, comenta a historiadora.
O receio veio também, segundo Cássia, pelo contexto de Guerra Fria que o mundo enfrentava na época. “Naquele momento de Guerra Fria, quando os ânimos estavam exaltados, as ideias foram finalmente experimentadas. Porque até então só se tinha pensado o socialismo, e a partir dali passou-se a vivê-lo. Essa bipolarização nada mais foi do que isso: a constatação de que o socialismo não estava mais preso à URSS, ele podia se espalhar pelo mundo, como de fato fez”, conta.
Além de golpes violentos, o contexto que permeia o ano de 1968 é marcado por repressão e conflitos armados em outras partes do mundo, e não só na América Latina. No Vietnã, a guerra que durou 16 anos e matou mais de um milhão de pessoas passava pela sua fase mais sangrenta naquele ano; nos Estados Unidos morria assassinado o pastor e ativista pelos direitos dos negros, Martin Luther King, em um atentado movido por supostas razões racistas.
Foto em 360 graus mostra equipe do LabFor da ESPM em visita ao Memorial da Resistência | Foto: André Deak/LabFor
Tortura
Violações de direitos humanos também fazem parte da história do golpe militar brasileiro, especialmente após o decreto do AI 5. Tais atos de violência eram usados, principalmente, em locais de detenção, divididos em dois departamentos: Dops, comandado pela polícia civil; e DOI-CODI, sob liderança militar.
Rose ficou detida no Dops por aproximadamente 40 dias, e conta que o terror começou no momento em que pediu um absorvente a um guarda. O pedido despertou revolta nos policiais. “Ele ficou bravo e me levou ao superior dele. Quando cheguei começaram a me chamar de vaca leiteira e de terrorista. Abriram o jornal daquele dia e uma vaca havia ganhado um concurso, ela se chamava Miss Brasil. Daquele dia em diante fiquei apelidada assim, e vocês podem imaginar o que isso significava”, fala.
Rose relata que era abusada por um homem específico, enquanto outros assistiam rindo e dando tapas. “Um dia ele me beliscou tanto, mas tanto, que eu fiquei preta. Eu gritava e eles riam. A pior coisa para mim era a risada – porque eu estava sangrando, porque eu estava cheirando, porque eu era magra e tinha parido”. Houve um dia em que um enfermeiro chegou em sua cela com uma seringa. “Era uma injeção para cortar meu leite, porque o cheiro azedo tirava o tesão do cara que me estuprava”, relata.
A falta de higiene e os abusos fizeram com que ela contraísse uma infecção no útero que a deixou estéril. “Eu sentia que tinha muita febre e um dia disse que achava que estava doente. O guarda respondeu que ali ninguém ficava doente e que se eu reclamasse muito iria virar presunto”. Na tortura as ameaças se estenderam duas vezes a seu filho também. “Ele me dizia assim ‘o chefe é ruim, ele queima, ele vai queimar o moleque; ele quebra a perna’, imaginem o meu medo”.
Criméia de Almeida, formada em enfermagem, participou da Guerrilha do Araguaia e também foi torturada na ditadura. “A tortura não visa matar o indivíduo, ela visa humilhar, tirar a vontade da pessoa, tanto que chega uma hora que você não liga mais. Eu queria morrer.” Mesmo grávida de sete meses, Criméia passou por horas de interrogatório e, consequentemente, de torturas físicas e psicológicas, até mesmo no momento de dar à luz ao seu primeiro filho, no Hospital Militar de Brasília.
A entrevista de Criméia de Almeida pode ser ouvida na íntegra no podcast “Mulheres que Resistiram: Memórias da Ditadura”, uma produção do núcleo de rádio do Centro Experimental de Jornalismo da ESPM-SP. O projeto traz três relatos em áudio de mulheres que sobreviveram à tortura na ditadura. Para ouvir a série, que reuniu oito alunos sob supervisão da professora Patrícia Rangel, acesse o link http://jornalismosp.espm.br/especiais/podcast-mulheres-na-ditadura.
Mas Rose e Criméia não foram as únicas a sofrer com a ação militar. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, 434 pessoas foram mortas durante o período de ditadura militar e outras 210 são tidas como desaparecidas. As torturas do período foram realizadas por 377 agentes do Estado (policiais e militares) que foram anistiados anos depois.
Pichações contra a ditadura se multiplicaram nas ruas das grandes cidades brasileiras depois do AI-5 | Foto: Reprodução
Passeata
Um ano antes, em 1968, a jornalista fazia a cobertura da Passeata dos Cem Mil, ação contra a repressão que vinha crescendo desde que o regime militar havia se instalado no Brasil, quatro anos antes. Os protestos começaram com a morte do estudante Edson Luís, assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. A partir daí revoltas populares organizadas por estudantes tomavam as ruas, deixando o governo, como diz Rose, “com medo”. A Passeata foi o estopim, segundo a jornalista, para a instalação do AI 5. “Os militares não agiram durante o evento porque se sentiram em desvantagem. Aí para não ficar feio, esperaram a rainha Elisabeth deixar o Brasil para decretar o Ato mais desumano que o Brasil já experimentou”.
Rose lembra que durante a cobertura que fez para a Folha da Tarde sobre a visita da rainha da Inglaterra, corriam rumores sobre a possível instauração de uma lei mais pesada de repressão. “A gente ouvia vários comentários de colegas dizendo que a coisa ia pegar no Brasil, mas não imaginávamos que seria da maneira que foi. A realidade foi muito pior do que pensá- vamos”, conta.
Exposição em Porto Alegre lembrou vítimas da ditadura militar no Brasil | Foto: Guilherme Testa/Creative Commons
Transferência
Passados 40 dias no Dops, houve um inquérito e o juiz decretou prisão preventiva. “Eles decretavam a prisão por lote. Todos que foram presos aquele dia receberam a mesma sentença. Fomos presos pela Lei de Segurança Nacional, acusados de tentar derrubar o governo”, conta Rose. A medida implicava na transferência ao presídio de Tiradentes, onde permaneceu por mais nove meses. “Ir para lá era um alívio, porque não tinha tortura”. Chegou a ficar presa com aproximadamente 60 mulheres, grupo chamado de “Donzelas da Torre”.
A liberdade chegou de surpresa. Passados os nove meses, ela conta que estava em sua cela com uma colega quando foi chamada à auditoria. Pensaram que assinariam papéis e quando entraram o juiz civil perguntou se aceitariam a condição de liberdade vigiada. Aceitaram. “Saímos em uma sexta-feira, 23h. A gente não acreditava, era muito emocionante, porque para cada pessoa que saía o presidio inteiro cantava ‘minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem querer. Se Deus quiser quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer. Meus companheiros também vão voltar e a Deus do céu vamos agradecer’. Sair ouvindo isso foi uma emoção muito grande, principalmente quando vimos a família na calçada esperando”, relata emocionada.
A jornalista foi morar com a sogra e com o filho, enquanto seu marido permaneceu preso por mais um ano. “Foi aí que pude conhecer meu filho, dormir com o bercinho do lado, vê-lo pular de manhã para a cama”. Nos dois anos e meio seguintes ela precisava, semanalmente, comparecer à auditoria militar para assinar o livro. “Meu dia era toda sexta-feira às 13h, se chegasse às 13h30 já estava presa”, relata. Mesmo proibida de sair à noite, viajar e trabalhar, a necessidade exigiu a procura por um emprego, que encontrou em uma revista técnica sobre construção. “Pensei que ali ninguém iria me achar. Anos mais tarde, quando peguei o dossiê que faziam no SNI (Serviço Nacional de Informações), vi que tinha espião dizendo que eu trabalhava lá, mas que aparentemente não oferecia perigo”, conta indignada. “Tinha ditadura, mas a gente tinha que viver. A vida é mais forte e tem que continuar, eu tinha que criar meu filho”.
Mesmo depois de ser absolvida no julgamento que durou dois dias, Rose enfrentou uma série de desafios para seguir em frente. Sem contar aos chefes o processo pelo qual respondia, porque “se falasse iria para a rua direto”, chegou ao trabalho e foi barrada na entrada. “O porteiro falou que sentia muito, mas que não podia me deixar entrar porque haviam dito que eu era terrorista e que não sabiam do perigo que estavam correndo comigo ali dentro. Fui demitida pelo porteiro na calçada”, lamenta. Depois foi chamada a trabalhar sob registro na Editora Abril, empresa que já trabalhara, e recomeçou a carreira. “Você não encontrava emprego, os caras iam aonde você trabalhava dizendo que você tinha de ser demitido. E demitiam. As empresas tinham medo”, conta.
Rose classifica o ano de 1968 como o período em que todo o questionamento sobre a velha ordem começou a ser feito. A mudança de comportamento que permeava os anos anteriores ao Ato Institucional no 5 foi muito forte. As pessoas começaram a morar sozinhas ou a se juntarem com parceiros sem casar. “A palavra liberdade valia para o regime, mas valia para tudo, para roupa, para atitude. Tinha-se a ditadura, mas tinha-se uma juventude criativa”, defende.
Quando questionada sobre a herança deixada pelo ano 1968 ao Brasil, Rose é clara: “O ano deixou de legado a certeza de que a resistência à tirania é um dos direitos do homem”. Segundo ela, o período de opressão trouxe o desejo de liberdade. “A liberdade era possível através da música, da poesia, do amor livre”, relembra.
Apesar dos traumas e da demora em conseguir falar sobre o sofrimento que vivenciou durante o período, ela é otimista. “Eu sou sobrevivente, por isso que eu confio na vida, por isso que eu acredito na juventude.”