Reportagem mostra o melhor de 1968
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Por Marcella Stewers
»»» “1968 foi o ano da rebelião pela igualdade.” É assim que o político, ativista social e radialista José Luís Del Roio descreve o emblemático ano – mas a frase poderia ser aplicada para descrever seu jeito de encarar a vida. Um dos criadores da ALN (Aliança Libertadora Nacional), organização revolucionária contrária ao golpe militar, e colecionador de um acervo extenso de documentos censurados pela ditadura, Del Roio sonha com o ideal de igualdade até hoje, 50 anos depois.
Participante de movimentos civis desde os 17 anos, Del Roio defende que a questão do engajamento político depende do contexto social do país. “Eu vivia em um contexto em que as revoluções estavam gritando”, diz.
O ano é marcado por revoluções em várias frentes. Alemanha, França e Itália realizaram grandes conquistas de direitos civis, como a democratização do acesso ao ensino superior. Nos Estados Unidos, os Panteras Negras balançavam o país, pregando a luta armada contra a violência racial. Paralelamente, o pastor e líder pacifista do movimento negro Martin Luther King mobilizava milhões de afroamericanos em passeatas históricas. Assassinado em 1968 por disparos de arma de fogo, Luther King deixou um legado até hoje lembrado pelo movimento negro.
Del Roio viu nesses movimentos estrangeiros uma inspiração para reescrever a história no próprio país. “Assim como Tiradentes fez história lutando pela libertação do domínio colonial”, conta. “Se você não tivesse um ponto de referência na história do Brasil, o que você faria? Você não teria passado, você não teria futuro. A gente fez a história do Brasil.”
Acervo
Del Roio é responsável pela criação de um enorme arquivo da história brasileira dos oprimidos. Ele retirou importantes documentos do acervo do Partido Comunista Brasileiro e da biblioteca de Astrojildo Pereira – escritor e crítico literário fluminense falecido em 1965 e especializado nas obras de Machado de Assis. “Fiz isso porque a ditadura tinha interesse em liquidar tudo o que tivesse envolvimento com os opressores, então montei um arquivo muito grande da história da resistência operária desde o fim de 1800”.
Para conseguir manter esse material intacto, Del Roio o retirou do Brasil, no auge da ditadura, e o despachou para a Europa em dois contêineres. “Foram duas viagens tumultuadas, uma de saída, e, anos depois, uma de entrada no país. Alguns documentos estavam guardados em um porão que inundou. Eu lembro que o que mais doeu foi perder um jornal escrito à mão por Graciliano Ramos, na cadeia, em 1935. Eu peguei e ele virou poeira.”
A coleção contém desde cartas e panfletos de militantes, até um livro inédito escrito à mão por Astrojildo e que será publicado em breve, além de um cartaz original da Revolução Russa. Esse vasto material fica arquivado no Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Unesp), na praça da Sé, no centro de São Paulo.
Direitos femininos
Um dos legados mais positivos da década de 1960 está ligado a conquistas de movimentos civis. Nessa época vários movimentos de contracultura
gestados nos anos 1950 ganharam força, como, o movimento gay, o movimento negro, o movimento hippie e o próprio feminismo. As mulheres conquistaram novas frentes de trabalho e mais espaço na vida pública.
Para a historiadora e socióloga Rosana Schwartz, nesse período as mulheres começaram a discutir o direito de casar e de divorciar, de ter quantos filhos quisessem e de lutar contra o machismo. “A violência doméstica e o divórcio começaram a ser discutidos porque as leis eram totalmente machistas. Antes a mulher perdia praticamente tudo se ela se separasse. Se fosse vista em outro relacionamento, ela era considerada uma mulher fora
das regras. Todas essas discussões vêm à tona nos anos 1960”, diz.
Conhecido por se tornar um marco da luta feminista, o Bra-Burning é o famoso protesto de queima de sutiãs –que, embora não tenha terminado na incineração propriamente dita, incendiou o imaginário da época.
O protesto parou a cidade de Atlantic City em setembro de 1968, por ocasião do concurso “Miss America” daquele ano. Contou com a presença de mais de 400 ativistas da Women’s Liberation Movement para protestar contra a ditatura da beleza imposta às mulheres. Foram empilhados no chão sapatos de salto alto, cílios postiços, espartilhos, cintas e sutiãs, símbolos de um modelo de beleza opressor para as mulheres. O objetivo era queimá-los, o que acabou não ocorrendo, mas a intensa cobertura midiática do evento eternizou a ação. “A Queima dos Sutiãs impactou o mundo porque foi grande e forte. Elas tinham ideias bem pontuadas: nós vamos agir dessa maneira e pronto”, diz Rosana.
Outro marco para a emancipação feminina foi a criação da pílula anticoncepcional. Com o controle da fertilidade, a mulher iniciava a longa jornada rumo à liberdade sexual, à possibilidade de, como o homem, ter uma vida sexual ativa sem a preocupação de engravidar.
No mundo do trabalho, o fortalecimento da participação feminina gerava, contudo, preconceito. “Quando faltava trabalho era mais ou menos assim: olha, a mulher está no campo de trabalho e eu não tenho emprego porque ela está lá. Era assim que pensava o mundo machista”, resume Rosana, que, ao comentar as batalhas ainda em curso, é direta: “Precisamos consolidar o fim da violência, porque ela ainda está aí. Tanto a doméstica como a da rua e do trabalho”. Nesse ponto, avançou-se pouco. Mesmo com a Lei Maria da Penha, ainda hoje é comum as mulheres não denunciarem casos de assédio sexual ou moral, ou mesmo de agressão física.
Cena do documentário “She’s Beautiful When She’s Angry” (Ela Fica Linda Quando Está Zangada), sobre movimentos pelos direitos das mulheres nos EUA nos anos 1960 e 1970 | Foto: Diana Davies/International Film Circuit
Criatividade
É inegável o fato de que 1968 foi um ano de efervescência criativa. Leonardo Trevisan, jornalista e historiador, mestre em história econômica e doutor em ciência política, cita uma frase do crítico literário Roberto Schwarz para definir o momento: “O Brasil em 1968 estava inacreditavelmente inteligente”. Ou seja: o país começava a discutir ideias como nunca antes. E não era só no Brasil que isso ocorria, esse fenômeno atingiu o mundo inteiro.
“Temos que fazer uma reflexão sobre o que estava acontecendo no mundo para entendermos o que Caetano Veloso viu em um muro de Paris e eternizou no verso: é proibido proibir”, completa o professor. Para Trevisan, o que estava agitando o mundo era uma espécie de bonança econômica, proveniente do pós-Segunda Guerra Mundial. Vinte e três anos depois o mundo estava voltando a crescer, a riqueza e prosperidade eram fortes.
Nesse clima de otimismo, fartura e liberdade – ao menos nas grandes democracias –, o mundo vivia episódios marcantes. Maio de 1968 entrou para a história com protestos de estudantes parisienses lutando, inicialmente, contra a divisão dos dormitórios da Universidade de Nanterre entre homens e mulheres. Disso, o movimento avançou para uma reivindicação mais ampla e profunda pelo fim de certas posturas conservadoras da sociedade francesa – culminando com o pedido de afastamento do presidente Charles de Gaulle, identificado com o conservadorismo.
De Gaulle conseguiu contornar a situação, prometendo aumentos aos trabalhadores e convocando eleições legislativas, mas o movimento dos estudantes inspirou uma onda libertária na França e ao redor do mundo, pregando slogans como “sejam realistas, exijam o impossível”.
Não muito longe dali, na então Tchecoslováquia, começava a chamada Primavera de Praga, que durou de janeiro a agosto daquele ano. Foi um movimento político que tinha como objetivo estabelecer reformas também mais libertárias, contra a rigidez do regime soviético, reestabelecendo a liberdade de imprensa e de culto e também de formação de partidos políticos. Uma boa parcela da população, principalmente os jovens, apoiavam essas transformações, no entanto, a União Soviética e seus aliados se opuseram às mudanças e em agosto de 1968 intervieram no país, que passaria mais duas décadas governado com mãos de ferro.
Economia e cultura
“De certa forma, a geração de 1968 foi a primeira no mundo que teve uma vida melhor do que a dos seus pais”, observa Trevisan, citando o historiador Eric Hobsbawn. Com um mundo em processo de desenvolvimento e rico, a geração jovem não tinha compromissos sérios com uma estrutura produtiva.
Havia fartura de empregos e renda.
O Milagre Econômico é exemplo disso. O termo designa a rápida ascensão econômica que o Brasil passou em 1968, período marcado por um forte crescimento e desenvolvimento da indústria e do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Houve também aumento da empregabilidade, baixo nível de inflação e melhorias na infraestrutura geral do país. Enquanto a política ia mal, a economia ia bem – ao menos aparentemente, porque o lado B do Milagre Econômico seria a hiperinflação que assolou o país nas duas décadas seguintes.
No mundo das artes, a efervescência de 1968 também se manifestava. Del Roio lembra de um dos maiores diretores de teatro da época: Augusto Boal. Ele criou o Teatro dos Oprimidos, método que virou referência internacional por unir arte e ação social. Para Del Roio, ele construiu um conceito revolucionário de teatro.
Cecília Boal, atriz, psicanalista, mulher do dramaturgo e criadora do Instituto Augusto Boal, defende a ideia de que 1968 é o compilado de tudo o que vinha antes. Não foi um ano bom, é claro, considerando o contexto ditatorial. Mas foi de intensa criação artística, e isso era ótimo.
Para Cecília, havia um movimento intenso de compositores, músicos e do próprio Teatro de Arena – companhia dirigida por Boal – no Brasil e em toda a América Latina. O Arena promoveu, por exemplo, a Primeira Feira Paulista de Opinião –reunião de textos curtos de diversos autores. Do trabalho resultou uma peça, que sofreu censura em 84 cenas. “Toda a classe teatral se reuniu para defender o espetáculo da Feira e decretaram, então, um ato de desobediência civil. Apresentamos a peça e foi lindo”, relembra Cecília.
Ditadura e criação artística, repressão e libertarismo, bonança econômica e trevas políticas: 1968 foi um ano de contrastes intensos. Havia de tudo, menos apatia. “O mundo estava em grande transformação, e 1968 é uma data que vai permanecer na história”, conclui Del Roio.