Editorial: A hora de ouvir as ruas
Compartilhar
RENATO ESSENFELDER – editor da revista Plural
Se é verdade que a vida é um grande teatro, somos todos atores. Representamos o tempo inteiro, revezando-nos em múltiplos papéis. Somos pais, filhos, irmãos, namorados, amigos, alunos, trabalhadores, atletas, vítimas e algozes.
Ao mesmo tempo, um milhão de personagens.
Em um célebre livro de 1959 intitulado “A Representação do Eu na Vida Cotidiana”, o sociólogo canadense Erving Goffman desenvolvia a ideia do mundo como palco onde se desenrolam as relações sociais segundo determinados figurinos e performances, cenografias e fachadas.
Mas, se nós representamos para o mundo uma multitude de papeis, quem, afinal nos representa nesse mesmo mundo?
Respostas tidas como tradicionais, como “partidos políticos”, “igrejas”, “sindicatos”, “grupos de mídia”, parecem insuficientes no cenário atual. O mundo mudou, num processo apenas catalisado pela internet e pela utopia da representação direta, sem intermediários, alimentada pelas redes sociais. Essas instituições já não parecem dar conta da complexidade contemporânea.
Então, quem nos representa?
Embalada pelas manifestações que eclodiram em junho deste ano em todo o país, esta edição da Plural se lançou ao gigantesco desafio de destrinchar essa questão. Ao longo de quatro meses procuramos sociólogos, psicólogos, antropólogos, historiadores, economistas, ativistas, jornalistas e políticos para lançar luz ao problema. Fomos às grandes manifestações – de início contra o aumento das tarifas de ônibus; depois, por um Brasil melhor. Entrevistamos desde anônimos na multidão até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que foi taxativo: a crise de representação que experimentamos hoje é real e será duradoura.
No calor dos eventos, não foi possível cravar uma única resposta para aquela inquietante pergunta. Nem seria preciso: o papel do jornalismo, ao informar, é mais o de suscitar o debate público, plural e democrático, do que o de apresentar proposições fechadas sobre o mundo. Há certezas e perigos demais por aí.
O papel do jornalismo, tal qual entendido pela equipe desta revista, é o de ir às ruas e captar a pulsação do tecido social, ressignificando-a em imagens e palavras. Problematizar o mundo em que vivemos, estourar bolhas, colocar pessoas em contato com pessoas – o que só se faz gastando sola de sapato. Em tempos de crise inclusive no jornalismo, eis o nosso protesto.