Novos narcisos se apaixonam pela própria imagem nas redes sociais
Compartilhar
Beatriz Consolin
Charles Campos
Giovanna Lunardelli
Urssula Nobre
»»»Se, há algumas décadas, fosse dito que em 2016 uma das principais referências no mundo das celebridades teria começado sua fama com um vídeo de sexo vazado na internet, provavelmente achariam o fim dos tempos. Ainda mais se tratando de uma figura que não se destacou por algum talento ou trabalho específico. Mas essa celebridade existe e sua fama aumenta a cada dia. Seu nome? Kim Kardashian.
Mas 2016 não é o fim dos tempos – talvez seja o início de uma era. Nela, nomes como o de Kim e o de Paris Hilton, outra cuja fama veio após um vídeo caseiro de sexo, representam um fenômeno. Kim consegue manter, junto de sua família, um reality show de sucesso que está prestes a completar 10 anos no ar. Mas por que tanto fascínio e o que isso revela do mundo atual?
A cultura das selfies e da autoexposição nas mídias digitais transformou a sociedade contemporânea. Fazemos parte de um mundo que cultua o aspecto visual, em que as pessoas idolatram a imagem que criam de si mesmas e necessitam de plateias cada vez maiores. Esse fenômeno evidencia o forte papel do narcisismo naquilo que o escritor peruano Mario Vargas Llosa caracterizou como uma “civilização do espetáculo”.
A palavra narcisista vem da mitologia grega. É inspirada na história de Narciso, jovem que é amaldiçoado e se apaixona pela própria imagem refletida em um lago. No entanto, não ultrapassa a barreira da contemplação visual, não toca naquilo pelo qual se enfeitiçara. Sabe que o reflexo se desmancharia.
O medo de sair do campo ilusório não é algo meramente literário, tampouco se manifesta apenas em personagens míticos. O forte caráter narcísico que domina a sociedade atual faz com que os indivíduos projetem uma imagem de si mesmos que não condiz com a verdade dos fatos. É nessa ilusão que as pessoas decidem acreditar e tentam se esconder. Desse modo, a ideia de que ela possa não ser verdadeira assusta.
A designer de moda e professora do Centro Universitário Uninovafapi (Piauí), Cláudia Cyléia, explica que “o sujeito narcisista entende e valoriza bem mais a aparência de sucesso que o sucesso em si”.
O psicólogo e professor da Universidade Mackenzie Aurélio Melo complementa que “na psicologia, o indivíduo narcísico não é aquele que ama muito a si mesmo. Na verdade o amor próprio é uma coisa boa. A característica do narcisismo é você amar uma imagem idealizada e se relacionar com ela”.
Quando uma sociedade com essas características elege suas personalidades, suas referências, é natural que essas figuras demonstrem semelhanças com os indivíduos contemporâneos. Os ídolos de uma sociedade narcísica são narcisistas.
Mas esse comportamento às vezes esconde inseguranças e fragilidades e pode refletir uma grande necessidade de aprovação. Na obra “Sobre o Behaviorismo”, do psicólogo americano Frederic Skinner, morto em 1990, o autor afirma que “só quando o mundo privado de uma pessoa se torna importante para os demais é que ele se torna importante para ela própria”. Por isso, a necessidade frenética de sentir que o outro tem interesse sobre o que acontece em sua vida e o desejo compulsivo de possuir uma plateia exclusiva assolam celebridades e pessoas comuns.
Cláudia Cyléia acredita que isso acontece porque existe um “esvaziamento do sentido de sucesso, isto é, ele não depende mais de esforço e disciplina, mas da aprovação de atributos pessoais e da aclamação pública”.
Um dos principais pensadores contemporâneos, o francês Edgar Morin relacionou as celebridades da atualidade com os deuses do Olimpo, presentes na mitologia grega. Para ele, essas figuras consideradas “divinas” e idolatradas séculos atrás hoje estão personificadas nas pessoas famosas, os novos “olimpianos”. São “heróis”, modelos de cultura, hábito e comportamento.
As redes sociais potencializam esse processo, supervalorizando a estética em detrimento do conteúdo reflexivo. A psicóloga Natali Maia Marques explica como esse processo se mostra prejudicial ao ser humano: “O indivíduo está sempre exigindo atenção, não consegue enxergar o outro. Consequentemente, não consegue estabelecer vínculo em uma relação saudável”.
Aurélio Melo, psicólogo do Mackenzie, conta que até seu filho caçula já o questionou sobre o motivo de a capa do seu celular ser transparente:
– Essa capa é sem graça pai. Por que você não coloca uma capa colorida?
Ou seja: “O mundo tem que ser colorido, tem que ser barulhento. O mundo tem que estar em festa o tempo todo. Isso é uma característica do espetáculo”, reflete.
No universo das Kardashians
Kim Kardashian é um paradigma desta nova era. Ela se tornou famosa ao saber aliar um escândalo, o vazamento de um vídeo de sexo com o ex-namorado, o rapper Ray J, com seu narcisismo e a vida de relativo luxo que já levava antes da fama. Atualmente, sua conta no Instagram é a que possui o quarto maior número de seguidores no mundo, perdendo apenas para as cantoras Taylor Swift e Selena Gomez e para o perfil do próprio Instagram.
O fenômeno Kardashian pode ser classificado como paradigmático da cultura da autopromoção exagerada. O público se identifica com o reality show da família, em que a ideia de perfeição e harmonia cede vez a escândalos e conflitos constantes. O objetivo é atrair o maior número de fãs, fazendo com que estes se sintam “íntimos” e próximos.
Entretanto, como os fãs dos “olimpianos” do século 21 recebem esse fenômeno? Apesar do sucesso, críticas ferozes permeiam a família Kardashian, por exemplo. Constantemente chamadas de “fúteis” e acusadas de possuírem fama sem ter feito nada de expressivo – apesar dos empreendimentos montados após a fama -, elas não parecem se importar com julgamentos.
Esse comportamento também alavanca seu sucesso e conquista seguidores. Gabriela Almeida tem 20 anos, faz economia e confessa que já pintou parte de seu cabelo de azul inspirada em uma das irmãs Kardashians, Kylie. Vitória Di Marco tem 19, estuda administração e acha engraçados os conflitos do reality: “A Kim fez um escândalo porque perdeu seu brinco de diamante na piscina. Eu também faria”, conta, rindo. Ambas admiram o estilo Kardashian de não se importar e de realmente “não estar nem aí”.
Gabriela vai mais fundo para responder os críticos. Em especial ao pai, que já a levou para visitar a cidade onde moram as Kardashians, separando um dia inteiro para visitar o bairro da casa da família, na esperança de, “sem querer”, esbarrar com uma delas. O pai, contudo, não aprova o interesse da filha pelas Kardashians.
— Elas são muito fúteis, não fazem nada…
— Pai, elas são mulheres fortes, fazem o que desejam e não ligam para o que os outros pensam. São empreendedoras e romperam com o padrão de beleza extremamente magro. Kim não se deixou abater com o vídeo vazado e ficou famosa porque foi inteligente. Elas estão onde estão por elas mesmas. Eu acho isso incrível. Elas me empoderam como mulher.
Mais do que isso, Gabriela ainda conta, com empolgação, as influências positivas que as irmãs tiveram em sua vida. Um exemplo aconteceu em uma festa do cursinho onde ela estudava. Ao se arrumar, pensou que as pessoas estariam vestidas em um estilo mais casual. Inspirada na caçula, Kylie Jenner, montou seu look com carinho. “Pus um shorts rasgado, curto, de cintura alta, um top preto só, uma camisa xadrez e uma meia calça preta até metade da perna e o cabelo azul. Se não fosse a Kylie, eu nunca teria coragem”.
Ao chegar ao evento, porém, encontrou todos os convidados com roupas formais. Ela confessa que chegou a se sentir “meio fora” dos padrões do lugar, mas logo pensou que não deveria se importar: “Ah, até parece que elas [Kardashians] iriam se sentir fora”. No meio da noite ainda escutou:
— Nossa, você está parecendo a Kylie!
— Yes! – pensou com um sorriso de orelha a orelha.
Apesar de tudo, ela admite que é necessário ter uma espécie de “filtro” para segui-las constantemente. Notou que estava “querendo demais” se encaixar no perfil “quase perfeito” das irmãs norte-americanas. Então percebeu que aquilo é inatingível e que é fundamental se amar do jeito que se é.