Dez dias no Haiti e a experiência de um trabalho voluntário com crianças
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O Haiti é considerado o país mais pobre da América Latina. Em 2010, a nação foi assunto de diversos noticiários pelo mundo ao ser assolada por um terremoto de magnitude 7,0 pontos na escala Richter, que resultou em 250 mil feridos, 1,5 milhão de desabrigados e mais de 200 mil mortes. Seis anos depois, a população ainda sofre com os efeitos da catástrofe e tenta se reestruturar.
Em julho de 2015, passei dez dias no país, realizando um trabalho humanitário. Ao sair do avião, o vento quente e úmido é a primeira coisa que choca. Dificilmente as temperaturas do país estão abaixo dos 25 graus Celsius, e, mesmo quando estão, a sensação térmica é infinitamente maior. Diariamente ocorrem chuvas rápidas, geralmente no final da tarde, aliviando um pouco o calor.
Depois do desembarque no aeroporto de Porto Príncipe, capital do país, os outros voluntários e eu andamos pela cidade para conhecer a sede do governo, destruída desde o terremoto e ainda em reconstrução. Durante o percurso, é nítida a diferença. Nas avenidas principais, carros modernos circulam em ruas asfaltadas, com diversas lojas americanas de automóveis ao redor. Cheguei a pensar que fosse exagero das pessoas dizer que o país é tão pobre assim, mas a impressão durou apenas por alguns minutos, pois, ao adentrar nos bairros mais afastados do centro, é praticamente impossível não se comover. Em casas de um ou dois cômodos, cinco, seis, sete pessoas vivem. Escombros do terremoto ainda estão lá, acumulados em terrenos para não bloquear a passagem nas ruas, geralmente esburacadas. Em córregos localizados próximos às casas, crianças divertem-se, tomam banho e mulheres lavam roupas.
Em cima dos famosos tap-tap (caminhonetes que transportam os passageiros na caçamba), seguimos para Mauwi, cidade onde o trabalho voluntário é realizado. Na estrada, a paisagem seca das montanhas contrasta com o mar, extremamente limpo e azul.
Mais de 200 crianças são alimentadas diariamente pelo programa de alimentação Feeding Hope, e outras 30 vivem no orfanato New Hope. Ambos os projetos pertencem à organização sem fins lucrativos Magic Beans, mantida pela americana April Copper, pela canadense Kristin Lee e por Alex Andrade, pastor brasileiro.
Na primeira ida ao orfanato, fomos recebidos pelas crianças na porta. Elas nos esperavam com um sorriso no rosto, um pouco tímidas, e prontas para o abraço. Levamos roupas, brinquedos, sapatos e itens de higiene pessoal. Saímos em torno do orfanato para distribuir saquinhos de doces às crianças do bairro, alguns elas nem conheciam. Nos dez dias que estivemos no New Hope, almoçamos com elas, brincamos, aprendemos algumas músicas, preparamos uma festa e as ajudamos a pintar alguns quadrinhos, que depois foram vendidos no Brasil, revertendo o dinheiro para ajudá-las.
No programa de alimentação também íamos todos os dias e ajudávamos a servir o almoço. Lá, as crianças cantam o tempo todo. Ensinaram-nos as músicas e coreografias e entramos na brincadeira também. A alegria delas é contagiante, impossível não sorrir.
A comunicação era feita em inglês, normalmente com os mais velhos, e com aqueles que não entendem a língua, usávamos mímicas. Elas eram infalíveis!
Elas amam fotos! Cada vez que eu tirava o celular do bolso, começava uma guerra para ver quem conseguiria pegá-lo para tirar a famosa selfie. No fim, tudo acabava em abraço e risada.
À noite, as ruas são totalmente escuras. Os únicos sinais de luz vêm das velas no interior das casas ou dos poucos geradores que existem na cidade, acendendo alguns postes. Durante o dia, o centro da cidade – que se resume a uma única rua – é cheio de barracas vendendo comida. As variedades vão desde arroz com feijão até língua de boi. O principal ingrediente usado nas comidas é a pimenta. Ela é utilizada como o sal aqui no Brasil e sempre em muita quantidade. Para quem não gosta ou não pode comê-la, é muito complicado se alimentar lá.
Desde o dia em que chegamos fomos recebidos por sorrisos e abraços, mesmo em meio a tantos problemas. As histórias são tristes, comoventes, algumas até impensáveis. Muitos dos que vivem no orfanato foram abandonados pelos pais ou os perderam no terremoto; a maioria do programa de alimentação tem aquela refeição como a única do dia. Ainda assim não negam sorrisos, todos são extremamente felizes. É notável nos olhares.
Vivenciar a dura realidade do país e do povo, me mostrou o quanto é necessário sairmos do comodismo e abrir os olhos para o que se encontra além dos nossos interesses ou realidade. Acredito que essa tenha sido a maior e mais marcante experiência que tive. Cada demonstração de afeto e história que conheci, me ensinou a valorizar as pequenas coisas da vida, muitas vezes passadas despercebidas com a correria do dia a dia. Lá, eu descobri a força de um abraço e o poder de um sorriso sincero. Cresci como pessoa e tive dezenas de conceitos e valores mudados completamente.
Sei que no Haiti e em tantos outros lugares do mundo, ainda há muito a ser feito, e na maior parte das vezes, fazer o muito ainda é pouco. No entanto, é possível fazer aquilo ao nosso alcance para levar um pouco de amor e esperança àqueles que estão à nossa volta. Saí de lá deixando uma parte de mim e trazendo parte daquelas crianças comigo. Hoje, a única certeza que tenho é a de que muito em breve, voltarei para ver aqueles sorrisos. Ainda há muito a ser feito. Para elas e para tantas outras, o muito ainda é pouco, mas é possível fazer aquilo ao nosso alcance para levar um pouco de esperança e amor àqueles que estão à nossa volta.