Descaso social e tabu tiram de mulheres direito a menstruação digna
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Foto: Arquivo Pessoal
Rita de Cássia em um dos encontros que ela organiza para falar com as mulheres sobre a violência contra a mulher e seus direitos
Iasmin Paiva, Lorena Pomarico, Duda Cambraia e Sophia Olegario (4º semestre)
“Eu menstruei com 11 anos, só que quando isso aconteceu, eu pensei que estava morrendo, porque eu não sabia o que era exatamente aquilo. Estava no banheiro achando que estava morrendo, e lembro de gritar para minha mãe: ‘Mãe, eu estou morrendo!’, e ela respondeu: ‘Não menina, apenas desceu para você’” , conta Rita de Cássia. Mulher, mãe solo, indígiena, professora da rede pública e uma simpatia de pessoa. Essas são as características marcantes de uma mulher que desde jovem é atraída por debates e pautas político-sociais, envolvendo os desfavorecidos da sociedade.
Rita de Cássia Fernanda da Silva nasceu e cresceu em Guarulhos, na Grande São Paulo, formou-se em Pedagogia pelo Sumaré Centro Universitário, fez pós-graduação em História, Relações Sociais e Cultura, além de obter outra titulação em Filosofia. Durante muito tempo, lecionou Filosofia, História e Sociologia em instituições do Estado. A professora engravidou logo no início de sua faculdade. Conciliar maternidade e estudo não foi fácil, mas foi um desafio que Rita decidiu encarar de cabeça erguida. “Já cheguei a levar meu filho escondido para a sala de aula mais de uma vez. Além da faculdade, eu também o levava para o trabalho”, relata a indígena.
Ao finalizar sua graduação, a futura supervisora da assistência social partiu para o Rio de Janeiro, após receber uma oportunidade para desenvolver seu mestrado na capital fluminense. Ao lado de Marielle Franco, Jean Wyllys e Marcelo Freixo, Rita foi convidada por Indianara Siqueira para lecionar em um pré-vestibular, Preparaenem, designado para prostitutas e transexuais, na Baixada Fluminense. Logo após o brutal assassinato de Marielle Franco, em 2018, a mãe de Rita temeu pela vida da filha, e a fez retornar imediatamente para sua cidade natal.
Hoje em dia, Rita de Cássia trabalha como supervisora da assistência social, sendo responsável por três diferentes territórios na zona norte de São Paulo: Casa Verde, Limão e Cachoeirinha. Introduzida em uma realidade invisibilizada, Rita ampara crianças e jovens desprovidos de condições ideais e de qualidade para viver. O acompanhamento desses adolescentes é realizado diariamente pela ONG atuante da região. Dentre as várias dificuldades enfrentadas por esses jovens, a supervisora destacou uma que afeta, majoritariamente, as meninas: a pobreza menstrual.
Mulheres e meninas ao redor do mundo inteiro sofrem com a falta de acesso a materiais básicos de higiene pessoal e com a desinformação sobre as transformações do próprio corpo. Segundo a ONU Mulheres, o total de pessoas nessas condições representa 12,5% da população mundial. Entretanto, os dados se tornam ainda mais espantosos quando entende-se que 1,25 bilhão de mulheres não possuem um banheiro próprio e 526 milhões não possuem sequer esse cômodo em suas casas.
Crianças. Jovens. Mulheres. Desprovidas de saneamento básico. Esquecidas. Desprovidas de uma condição digna de cuidado pessoal. Marginalizadas. Desprovidas de um atendimento justo para uma característica natural humana. Injustiçadas. Mulheres sem água encanada, esgoto, privada, banheiro. Mulheres sem banho. Sem direitos básicos. Abstratas. Mulheres vazias por fora, mas resistentes por dentro. Wanderlucia Alves de Lima, técnica de enfermagem, foi uma das vítimas da pobreza menstrual.
“Vivenciei muitas situações de precarização e desconforto durante a minha infância e adolescência. Lembro que várias mulheres da minha região utilizavam panos em vez de absorventes, justamente porque ou não tinham condições de comprá-los ou simplesmente não tinham acesso a eles. Então elas os usavam como forro, ou seja, forravam as calcinhas com pedaços de panos, e, ao final do dia, tiravam para lavar. Lavavam, esperavam secar e, pronto, utilizavam novamente no dia seguinte. E era assim todo mês”, relata a técnica.
Em Crateús, município do Ceará, Wanderlucia, juntamente aos seus dois irmãos e uma irmã, foram descobrindo os privilégios da vida aos poucos. Durante toda sua infância, a família viveu precariamente e sem o menor acesso a quaisquer benefícios sociais. A cearense iniciou seu ensino médio em 1997, aos 18 anos de idade, quando veio para São Paulo à procura de um emprego e educação de qualidade.
Situações como as experienciadas por Rita e Wanderlucia estão mais presentes, atualmente, do que se pode imaginar. Entretanto, a falta de informação e acesso a materiais básicos de higiene pessoal são apenas as consequências bases de uma sistema cercado por estigmas, que cooperam para que tal conjuntura precária seja invisibilizada. “A menstruação, assim como outras questões do universo feminino, ainda é um tabu e as mulheres precisam lidar com estigmas que envolvem um processo biológico que é natural”, explica Gabriella Mendes, historiadora e mestre em Educação, Ciências e Saúde pela UFRJ.
A escassa discussão sobre o assunto em instituições fundamentais para a construção de um pensamento crítico individual, nas escolas e nas próprias residências colabora para a marginalização do debate em outros espaços públicos e privados. “É um assunto completamente mal discutido, e na maioria das vezes é sempre abordado como um fator negativo, um empecilho da vida, um problema mensal que deve ser contornado e escondido, tampado de todas as formas e que é uma sujeira”, afirma Yasmin dos Reis, fisioterapeuta pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com ênfase na saúde da mulher.
Mulheres em situação de rua, encarceradas e estudantes sem informações
Talita e Carol são conhecidas no Rio de Janeiro como as meninas das calcinhas, porque em 2018 começaram a arrecadar absorventes e, mesmo com muito medo, saíram pela cidade buscando mulheres em situação de rua que precisavam daquelas doações: foi aí que surgiu a ONG Tô de Chico. Carolina Chiarello, uma geógrafa e cofundadora do projeto, estava em casa com a namorada, Talita Soares, que é engenheira de produção, quando conversamos com elas. Juntas, relembram os medos do início das doações, primeiro por serem garotas circulando sozinhas pelas ruas da capital carioca, mas também pelo receio em como abordar as mulheres, afinal, menstruação ainda é um tabu.
Foto: Arquivo Pessoal
Talita e Carol fundadoras do projeto Tô de Chico
Nas rotas feitas de carro desde o centro de Niterói até a periferia do Rio de Janeiro, as jovens encontram diferentes histórias pelo caminho e se surpreendem com cada uma delas. Carol compara os relatos ouvidos com um soco e relembra, com alegria, de um episódio que marcou o casal de forma positiva. “A gente já tinha doado para essa moça umas duas ou três vezes. Ela fica ali perto da Universidade Federal de Niterói. Quando a gente foi lá entregar para ela a calcinha e o absorvente, ela deu pra gente um sutiã que tinha recebido, mas o sutiã não cabia nela e aí ela doou pra gente. Ela falou assim: ‘Eu vou dar para o projeto porque vocês são as meninas da calcinha que sempre vêm aqui, então doa para quem precisa porque esse sutiã não cabe em mim’”, lembra Carol. Talita ainda complementa a namorada relatando, surpresa, sobre a condição em que a “mulher do sutiã” se encontra: “Ela sempre está lá com o livro estudando inglês.”
Apesar de sempre receberem ofertas de biscoito, almoço e carinho das mulheres em situação de rua, Talita e Carol se chateiam ao lembrar de relatos que envolvem descaso de políticas públicas. Nessa história a protagonista é uma mãe de família que reside em Nova Iguaçu, a cerca de uma hora da capital. Talita conta que foi a partir desse dia que ela percebeu que algumas mulheres em situação de rua têm casas. “A gente tava doando no Méier e essa moça falou assim: ‘Olha, eu tenho casa, eu tenho filhos e eu não consigo voltar porque eu moro no interior. Eu estou com um problema no coração e eu preciso me aposentar pelo INSS, eu estou me tratando nesse hospital e não tenho o dinheiro da passagem para voltar toda semana. Então eu moro aqui na rua até conseguir minha aposentadoria, enquanto isso meus filhos estão se criando lá sozinhos’”, Talita conta, revoltada, essa situação e ainda complementa: “Cara, isso não entra na minha cabeça, sabe? A pessoa tem que ficar na rua para receber uma coisa que é direito dela, que é o INSS”.
Essa indignação das jovens cariocas se estende quando mais histórias que envolvem o descaso de órgãos públicos são relatadas. Dessa vez, as meninas contam que a dona do relato é uma moradora de rua forte e determinada, que diz não ir para os abrigos do governo porque lá não é permitida a entrada de bens materiais. A mulher de meia idade diz que às vezes é possível dormir por apenas uma noite no local, mas se optasse por isso, ela teria que deixar seu cobertor para fora, o pertence provavelmente seria roubado e, quando ela voltasse para as ruas, não teria com o que se cobrir.
Apesar de as namoradas atuarem diretamente com moradoras em situação de rua, em um cenário pós-pandemia, elas sonham em levar o Tô de Chico para dentro das escolas. A geógrafa se revolta só de imaginar que existem meninas que deixam de frequentar as aulas por estarem menstruadas: “Isso é incabível. Não pode existir uma coisa dessas. Alguém não pode deixar de estudar porque está menstruada.”
A indignação de Carol se reflete em números. A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro calcula que as estudantes da cidade perdem, em média, 45 dias de aula devido a menstruação, o que equivale a um quarto do ano letivo. Além disso, uma pesquisa online de 2018 da Sempre Livre revelou que 22% das meninas de 12 a 14 anos não têm acesso a produtos confiáveis relacionados à menstruação, porque não têm dinheiro ou porque não são vendidos perto de casa, e a porcentagem cresce para 26% quando se trata de meninas na faixa dos 15 a 17 anos.
“A escola não está preparada para acolher essas meninas, porque não tem chuveiro, nem todas possuem absorventes e toalhas. E assim, muitas vezes quando acontece de vazar o absorvente e sujar a roupa de sangue, é uma burocracia muito grande para essa menina ir embora para casa, ela fica extremamente exposta”, conta Rita de Cássia, que já foi professora do ensino público. Segundo ela, as alunas optam por ficar em casa no período menstrual porque muitas se sentem inseguras em qualquer ambiente.
Rita relembra de uma aluna sua, que toda vez que se encontrava no período menstrual, se recusava a ir para a escola. “Ela não se sentia confortável nem de sentar na cadeira, realmente não frequentava a escola enquanto estivesse em seu período menstrual, quando ela faltava, nós já sabíamos o motivo”, relata. Vitória Fernandes, 15 anos, estudante do ensino médio da rede pública de São Paulo, confessa que já deixou de frequentar a praia e a igreja por estar menstruada, pois não se sentia confortável para ir a esses lugares durante o período.
Não são só as pessoas que estudam no ensino público que passam por essas situações. Stephanie (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada) estudou a vida inteira em escola particular no interior de Minas e, mesmo recebendo todas as instruções necessárias em relação ao ciclo menstrual, faltava à aula por nojo. “Eu ficava com preguiça de ir porque eu gostava muito de tomar banho. Eram cerca de seis banhos por dia, e aí ir para escola atrapalhava essa minha rotina”, relata a jovem de 20 anos.
Na mesma cidade, Formiga-MG, a professora de biologia Soraia Faria relembra de um caso em que a aluna menstruou e, por falta de informações, não usou absorvente. “Ela ficou menstruada na escola e, por vergonha, ficou com a roupa suja. Os colegas viram e relataram para as professoras. Nesse caso, a aluna estava completamente suja e não era uma pessoa carente, a gente a julgava bem instruída”, relembra a mineira. A filósofa Rita de Cássia comenta que esses casos são recorrentes e que a mulher acaba sendo vítima de chacota. “Não é feito esse trabalho de aprendizagem sobre o corpo, e a criança já não quer mais ir para a escola. Pois fica com esse receio e é essa falta de conhecimento sobre o próprio corpo feminino que ainda não acabou. O homem pode reconhecer o seu próprio corpo, enquanto a mulher não. E a menstruação é fundamental para a mulher conhecer o seu corpo, mas infelizmente, isso ainda não acabou”, comenta Rita.
A falta de acesso aos produtos de higiene não se resume às mulheres da periferia ou às em situações de rua. Como todas as mulheres marginalizadas pela sociedade, as detentas também sofrem com a questão da menstruação. O descaso tem origem fora da cadeia, em uma sociedade que não é aberta a falar sobre o que é ser mulher. Porém, “dentro dos presídios, o assunto não é só um tabu como é esquecido”, afirma a advogada Juliana Garcia, fundadora da ONG Nós Mulheres, que tem o objetivo de trazer um pouco de dignidade para as presas ao distribuir absorventes gratuitamente.
Foto: Arquivo Pessoal
Mari Garcia, Juliana Garcia, Vitória Drumond e Thainara Parisoto arrecadando absorventes para mulheres em situação de cárcere
Em uma sociedade que lê a realidade pelos olhos dos homens, as prisões não são diferentes. “Os presídios são feitos para homens e por homens”, constata a advogada, e usa como exemplo o papel higiênico, pois as mulheres usam esse material básico de higiene duas vezes, enquanto os homens uma só. “Não é possível que entreguem a mesma quantidade de papel para presídios masculinos e femininos. E quando você pensa na menstruação é ainda pior, é uma situação superprecária”, explica. A jovem conta relatos de mulheres que chegam aos presídios e, antes de irem para as celas, passam por uma triagem. “Se elas estiverem menstruadas, geralmente não recebem absorventes, então elas ficam menstruadas, usando a mesma calcinha por dias ou o mesmo absorvente por dias”, narra.
Dentro das prisões femininas brasileiras, as presas não recebem a quantidade adequada de absorventes. A Cobal, cesta básica, nem sempre garante um período menstrual digno, pois são os comandantes das unidades prisionais quem determinam quais os itens e as quantidades permitidas, fazendo com que as encarceradas dependam de materiais entregues por familiares.
No entanto, em uma sociedade patriarcal, a prisão dos homens tende a ser naturalizada, enquanto a mulher deve seguir aquilo que a sociedade espera dela: ser de família, ficar em casa e “se comportar”. Por esse motivo, as mulheres tendem a ser abandonadas e não receber visitas de familiares ou conhecidos, o que nesse caso, dificulta mais ainda o acesso delas a esses produtos básicos de higiene.
Cecília Café, estudante de Direito da Universidade Federal de Goiás, integrante do Pagu, coletivo feminista da faculdade, participou da arrecadação de absorventes realizados pelo Cajá, Coletivo de Assessoria Jurídica Popular de Goiânia, juntamente com o Pagu, para a penitenciária feminina Consuelo Nasser. Ela afirma, porém, que o problema vai além da falta de absorventes.
No início, para Cecília e as meninas envolvidas na ação, o coletor menstrual e o absorvente de pano pareciam uma boa solução para a questão da falta de absorventes para as mulheres carcerárias. Coletor menstrual é um recipiente de silicone, desenvolvido para coletar o fluxo menstrual internamente. Diferentemente dos absorventes descartáveis comuns ou internos, o coletor não absorve o sangue, apenas coleta. Além disso, ele pode durar até dez anos.
Mas após refletirem sobre a situação dos presídios femininos brasileiros, além da falta de acesso das mulheres com relação à informação sobre esse tipo de produto, seria inviável para as presidiárias fazer a devida higienização do coletor e do absorvente de pano, já que necessita ser fervido e lavado com sabonete, e as mulheres, também, não têm acesso a esses itens básicos.
As consequências do tabu
Os dados apresentados ao longo da reportagem traduzem, em parte, as consequências da pobreza menstrual, mas essa questão pode ser representada por uma ideia: o silêncio. O silêncio das meninas e mulheres com quem conversamos, mas não quiseram responder; os rostos vermelhos em reação à palavra “menstruação”; as respostas em anônimo e as respostas monossilábicas; são as pessoas que marcaram de conversar, e na última hora mudaram de ideia; mas principalmente, e o pior de todos, é o silêncio das pessoas que não sabiam do que se tratava o assunto, e houve mais de uma pessoa para quem foi preciso explicar o que significa esse termo, e provar a sua relevância.
A consequência é a menstruação não existir nos espaços públicos, não ser debatida como uma questão de saúde, e pertencer a lugares muito menos dignos. Como no absorvente que as meninas passam por baixo da mochila; nos termos “chico”, “naqueles dias”, “tô de visita”, “mar vermelho” ou “vazando”, mas nunca em “sangue”; na vergonha, nojo, e às vezes também uma ofensa por entender ser acusada de algo sujo e errado, pois são esses os espaços restritos, sejam físicos ou abstratos, nos quais a menstruação circula.
O silenciamento do assunto provoca uma via de mão dupla, o tabu silencia o corpo feminino, enquanto o desconhecimento do próprio corpo e suas complexidades colabora para a perpetuação de uma noção de inferioridade. A médica ginecologista Fátima Oladejo explica que “as pacientes (as pessoas que menstruam no geral) não têm o direito de coletar seu sangue menstrual de uma forma higiênica e digna corroborando ainda mais com a questão de transformar esse assunto em um tabu”, ou seja, um ciclo de silenciamento e desinformação.
Dessa forma, passam a existir duas soluções: o improviso ou se esconder. Ambas provocam impactos físicos, psicológicos, ou comprometem o acesso a outros direitos. No primeiro caso, o uso de materiais não adequados para a coleta do sangue menstrual (como pano, papel jornal, ou até miolo de pão) ou o uso prolongado de absorventes propicia a proliferação de doenças e infecções. A ginecologista explica que o sangue menstrual em si é limpo, porém “independente de onde saia, ele é um meio de cultura, e portanto, é propício à contaminação”.
Se o sangue coletado ficar em contato com o corpo da pessoa por mais tempo do que deveria ou de maneira inadequada, diferentes bactérias podem proliferar no ambiente. “Elas podem contaminar a vagina, o colo do útero, e até levar a uma endometrite, que é uma infecção do endométrio, ou também a uma inflamação pélvica”, conta a médica, que concluiu indicando a possibilidade de sequelas mais graves, como infertilidade ou, em último caso, retirar o útero.
No que concerne ao psicológico dessas pessoas, a menarca (a primeira menstruação) torna-se um momento muito importante da vida, pois é uma oportunidade de falar melhor sobre o assunto. A psicóloga, socióloga e mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Lilian Machado explica que “esse é um momento marcante de conhecimento, desconhecimento e reconhecimento de si”, mas também é o período em que aumentam as cobranças sociais, como “não senta assim”, “não ande com fulano”, ou “não use tal roupa”. Tais cobranças, segundo a especialista, vão mais no sentido de evitar uma gravidez indesejada ou na preocupação quanto “o que vão pensar da minha filha?”, e menos no de contribuir para uma educação e orientação para a prevenção da saúde.
A psicóloga afirma que sem a ajuda necessária nesse período, a pré-adolescente tenta descobrir sozinha como lidar com seu corpo em transformação. “Mais uma vez perdemos [como sociedade] a oportunidade de cuidar de perto e promover a saúde de forma expandida”, defende. Ela explica que quando não há essa abordagem pedagógica do assunto, as mulheres interiorizam inverdades sobre o próprio corpo e aprendem a negligenciar a própria saúde.
As consequências, contudo, são difíceis de mensurar sob o aspecto psicológico, mas são questões percebidas pela falta de acesso ao conhecimento. “Algumas das afetações que acompanho e considero das mais devastadoras, é o distanciamento de si mesmas, do deixar-se para depois, do não saber reconhecer e legitimar suas necessidades mais íntimas, da pouca ou nenhuma aproximação com o próprio corpo”, exemplifica. E conclui explicando que, meninas ensinadas a odiar, sentir vergonha ou nojo da própria menstruação, articulado com a visão que constroem de si, sofrem consequências diretas na forma como se relacionam afetivamente, seja consigo mesmas ou com outras pessoas.
Cecília Café confirma que as questões políticas e sociais, como o desconhecimento sobre a higiene pessoal, interferem diretamente nas subjetividades das pessoas, e acredita ser impossível falar de autoestima e confiança para a emancipação, sem citar os espaços sociais que são ocupados. Ela explica que somos constituídos a partir de relações sociais. “Se a gente tem uma sociedade que não é aberta a falar sobre o que é ser mulher, isso afeta negativamente a constituição psicológica das mulheres, que se sentem inferiorizadas e rejeitadas”, justifica. A estudante explica que “o saber da mulher, saber de si mesma, saber se posicionar e saber demandar de uma sociedade que só lê a partir da parte masculina”, se relaciona aos lugares e cargos socialmente designados para as mulheres, e à falta de confiança delas para os transgredirem.
Tendo isso em vista, outra possibilidade existente para lidar com o preconceito da menstruação é o isolamento, as pessoas se afastam do convívio social como medida para lidar com a dificuldade de coletar o sangue e evitar constrangimentos. Como foi percebido pelas meninas da Tô de Chico, faltar à escola ou ao trabalho são algumas das alternativas. Sendo assim, é importante que mulheres passem a se considerar seres políticos, com pautas relevantes, que se emancipem dos tabus patriarcais, e falem por si e sobre o próprio corpo, colocando-o em espaços mais dignificados.
Como acabar com a desigualdade e o tabu?
O debate sobre a pobreza menstrual vem tomando espaços de discussões, principalmente, nas redes sociais e nas mídias. No ano passado, o tema chegou até o palco do Oscar, quando um curta que conta a história de uma comunidade na Índia em que as mulheres tiveram de aprender a fabricar os seus próprios absorventes, chamado Absorvendo o tabu, levou o prêmio da noite de melhor documentário. A solução desse problema deve se iniciar com um debate, mas principalmente um debate que inclua todas as mulheres, e não fique apenas restrito a uma pequena parte privilegiada da sociedade.
De acordo com Cecília Café, uma questão muito discutida dentro da assessoria jurídica popular, é que quando se trata da pobreza menstrual, a melhor maneira de solucionar o problema , é iniciar um debate que instrumentalize as pessoas oprimidas e marginalizadas, para que elas mesmas consigam garantir seus direitos e romper com essa hierarquia. “As pessoas ali sabem de seus direitos, elas sabem do que elas precisam, talvez não saibam com as nossas palavras jurídicas, mas elas sabem. Construir um trabalho é mostrar que é legítimo lutar pelos seus direitos, lutar por posições melhores e mais dignas. É importante dar voz a essas pessoas e o espaço para elas se entenderem como sujeitos ativos da própria realidade”, completa ela.
Além disso, a educação sexual, aplicada a crianças e adolescentes, tem o intuito de quebrar tabus e preconceitos relacionados não só ao sexo, mas também sobre contraceptivos, infecções sexualmente transmissíveis e sobre o organismo masculino e feminino, incluindo a menstruação. A disseminação do conhecimento logo na fase inicial da vida constrói uma sociedade que não exclui as necessidades de seus integrantes e que prioriza os direitos básicos que envolvem esse tema. “A orientação sexual é fundamental para que as crianças reconheçam seus corpos. Se o menino entende como funciona o corpo de uma mulher, o machismo pode ser menor, afinal, o garoto vai ter uma compreensão melhor de como tratar aquela mulher, e entender que não são frescura ou chilique certos aspectos femininos”, coloca Rita.
Quando se trata do ambiente escolar, e considerando que a menstruação está diretamente associada com a autoestima da menina, é importante que aconteça, juntamente às aulas de educação sexual, um acompanhamento psicológico e assistencial. Gabriella Mendes, mestre pela UFRJ, problematiza o formato do sistema educacional atualmente, afirmando que ela se limita às aulas de ciências, criando uma atmosfera demasiado rígida e que não dá espaço para a discussão ou ampliação do tema. As escolas não têm visado ampliar a perspectiva dos adolescentes em relação aos preconceitos de gênero, doenças, gravidez na adolescência ou desnaturalizar idéias concretas programadas pelo senso comum, defende. Lembrando, também, que a menstruação está diretamente ligada à saúde sexual, prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e também à gravidez.
Outra medida importante é a distribuição de absorventes gratuitamente pelo Estado. Gabriella levantou que a Câmara dos Vereadores do Rio aprovou a lei nº 6603, de 2019, que prevê o fornecimento de absorventes nas escolas públicas da rede municipal, mas o prefeito da cidade, Marcelo Crivella, não sancionou a medida. Por esse motivo, ela não acredita que exista um projeto que contemple devidamente a questão: “Iniciaram um processo de distribuição junto com cestas básicas, mas essas iniciativas ainda não estão consolidadas”. Yasmin dos Reis, fisioterapeuta pela UFJF, concordou, afirmando que as diferentes iniciativas de fornecimento de absorventes e coletores não são totalmente eficientes. “Menstruação não é só estancar sangue, a gente precisa ter uma higiene, e é muito mais do que isso”, concluiu a fisioterapeuta.
No início de 2019, a deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) propôs um Projeto de Lei para garantir a distribuição gratuita de absorventes em locais públicos. Ela foi alvo de insultos e desinformação, disseminada por membros do próprio governo, como Abraham Weintraub, o ministro da educação do período, que publicou em redes sociais que o custo para seu projeto seria mais de 40 vezes maior. A deputada classificou a reação como “virulenta e machista”, e afirmou em sua coluna do jornal Folha de S. Paulo que “quem se indigna com a proposta demonstra desconhecimento da realidade do nosso país”. Tabata também solicitou que as pessoas sigam lutando pelo direito de menstruar livremente.(*)
Fotos: Reprodução
Prints de mensagens das redes sociais de Tabata Amaral e Abraham Weintraub
Na prática, projetos que buscam democratizar o acesso aos absorventes facilitariam as vidas de mulheres em diferentes condições de vulnerabilidade social. Juliana, fundadora do Nós Mulheres, explica que eles poderiam ser distribuídos em maior quantidade para os presídios, pois a atual superpopulação desses locais inviabiliza a quantidade adequada de material para todas as mulheres ali, e elas acabam recebendo poucos absorventes, trocando menos vezes. Com uma lei que garantisse o acesso, a advogada calcula que a entrega seria feita “em uma maior proporção, de forma mais eficaz e para todas as mulheres que sofrem esse tipo de precariedade quando o assunto é menstruação”.
A médica Fátima enxerga na questão um problema de saúde pública. “Não é só um luxo ou acessório que a pessoa com vagina usa todo mês, é realmente uma maneira de prevenir que essas pessoas procurem o SUS e o Estado acabe investindo em um tratamento que é muito mais caro do que poderia ser”, critica. Ela acredita que o custo da distribuição gratuita do material no SUS não é tão alto quanto os tratamentos decorrentes de alguma infecção provocada pela coleta errada do sangue menstrual.
Por fim, o problema também exige uma reflexão crítica e política coletiva, com o intuito de trazer para perto discussões sobre o tema. A psicóloga Lilian Machado elenca algumas perguntas fundamentais para fazer esse exercício: “A quem serve a desumanização das mulheres? A quem serve a manutenção da pobreza, da falta de acesso à saúde das mulheres majoritariamente negras nas escolas públicas, no atendimento público de saúde e nas penitenciárias?”. Ela conclui explicando que são questões necessárias para a construção de um mundo melhor: “Não só pelas nossas e pelas que vemos, mas sobretudo pelas que não vemos e que os olhos dos Três Poderes não têm interesse em enxergar”.