Julia Gianesi
»»»Uma das pesquisadoras brasileiras de maior reconhecimento em sua área, Lucia Santaella é professora titular do programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, com doutoramento em Teoria Literária e livre-docência em Ciências da Comunicação. Seu trabalho rendeu 28 livros e mais de 200 artigos.
Nesta entrevista, exclusiva para a Plural, ela comenta o fenômeno da chamada “cultura das celebridades” e afirma que “a celebridade é construída nas mídias e pelas mais diversas mídias. Quanto mais a celebridade aparecer, nas variadas versões que as diferentes mídias a ela dá, tanto mais ela será celebridade”.
Segundo a pesquisadora, a discussão sobre o tema passa por uma reflexão mais profunda sobre o que é cultura. Ela reforça que as mídias não só “criam cultura” como são indispensáveis para a própria existência de uma cultura. Leia a seguir a entrevista.
A mídia produz cultura? Caso afirmativo, o que caracterizaria essa cultura e como ela se diferencia daquela produzida historicamente pela sociedade?
A dúvida quanto à mídia produzir cultura sinaliza a necessidade de uma explanação acerca do que se entende tanto por mídia quanto por cultura. Até os anos 1980-90, o uso da palavra mídia era praticamente inexistente no Brasil e em outros países latinos. Sabe-se que media é uma palavra latina, plural de medium, ou meio.
Desde os anos 1990, [a palavra mídia] se alastrou até o ponto de não se saber mais do que se está efetivamente falando quando se diz mídia. Ela virou um coringa. Emprega-se sem nenhuma preocupação quanto ao campo a que se aplica. Afinal, de que se está falando? Dos meios de comunicação tradicionais, hoje chamados de grande mídia: jornal, rádio, televisão, publicidade? Ou se está falando da internet? Das redes sociais? E o livro, não é mídia? Passei a utilizar mídias como um substantivo geral, com especificações adjetivas dependendo do seu campo de referência, o que não significa que todas essas formas midiáticas não se cruzem, se complementem, se sobreponham ou que não haja competição, guerra e paz entre elas. Em suma, todos os meios de comunicação, mesmo aqueles que levamos em nosso próprio corpo biológico, são mídias. A que elas servem? À comunicação.
Neste ponto, entramos em outro campo minado, o da cultura. Minado porque são tantos os seus sentidos que há mais divergências ocultas do que convergências explícitas quando se fala sobre esse tema. Ora, não há cultura sem comunicação. Não há comunicação sem mídias. Não há mídia sem linguagem, ou seja, aquilo que semioticamente chamamos de signos, de todos os tipos e espécies: sonoros, visuais, audiovisuais, verbais e todas as suas misturas. Aí está a célebre frase de McLuhan: “o meio é a mensagem”, tão mal compreendida, bastante criticada há algumas décadas e hoje tão irrecusável. É também da escola de McLuhan, no Canadá, que vem a compreensão de que meios de comunicação criam ambientes culturais que funcionam econômica, política e ideativamente de acordo com os potenciais e limites desses meios e suas linguagens, meios que hoje chamamos de mídias. Por isso, podemos falar em uma cultura da oralidade, uma cultura gutenberguiana [relativo a Johannes Gutenberg, inventor da prensa de tipos moveis em 1455], uma cultura de massas, uma cultura dos gadgets, uma cultura digital e, dentro desta, dada a sua acelerada evolução, pode-se falar em cultura da mobilidade, cultura da ubiquidade etc. Portanto, não pode restar qualquer dúvida sobre o fato de que, sim, certamente, mídias criam cultura. Mais do que isso, sem mídias, de quaisquer espécies que possam ser, não haveria cultura, entendendo-se esta como formas diferenciadas de socialização de que decorrem todas as criações e marcas humanas sobre a biosfera, desde o sapiens sapiens.
Em seu livro “Civilização do Espetáculo”, o escritor Mario Vargas Llosa critica a ascensão da cultura do espetáculo, ou do entretenimento fácil, que estaria aniquilando uma certa “alta cultura”, de “prazeres difíceis”, como um livro de Faulkner, um filme de Fellini ou uma ópera de Verdi. Esta é, aliás, uma crítica comum à cultura predominante hoje. A sra. concorda com essa visão?
Não obstante a minha grande admiração por esse escritor, a posição de Vargas Llosa é marcadamente dualista ao dividir a cultura, de um lado, no mundo da salvação, a cultura erudita e, de outro, no mundo da perdição, todo o restante das produções culturais. Isso não corresponde aos fatos. Sou adepta das concepções de Bruno Latour de que o mundo moderno e o contemporâneo produzem a proliferação de híbridos, não havendo mais lugar para categorias puras. Mesmo a cultura que é chamada de entretenimento fácil é uma cultura de misturas.
Até o século XIX, no ocidente, só existiam duas formas de cultura; a erudita, de um lado, e a popular do outro. O advento da cultura da reprodutibilidade técnica deglutiu e miscigenou ambas as formas anteriores de cultura, roubando, de certa forma, o espaço de produção popular, mas não o espaço, sempre mais protegido, da produção erudita. Entretanto, ao sofrer o impacto da cultura de massas que se intensificou com os meios eletrônicos, rádio e televisão, a cultura erudita, embora na continuidade de sua existência, perdeu o domínio exclusivista de que dispunha desde o renascimento. Além disso, onde está a cultura do entretenimento fácil como uma categoria pura? Na televisão e no rádio? Discordo, pois o que é entretenimento fácil para uns, apresenta elementos educativos para outras faixas menos privilegiadas da população. Em suma, abandonemos as polaridades, pois elas mais ocultam do que revelam a complexidade do real.
Meu ponto de concordância em relação a Vargas Llosa situa-se na valorização da cultura erudita, infelizmente sempre mais acessível às elites econômicas e culturais. De fato, trata-se de uma cultura refinada, sem redundâncias facilitadoras, profundamente informativa e transformadora tanto do pensamento quanto da sensibilidade, ou seja, uma cultura para repertórios bem formados.
Portanto, em vez de, em defesa do popular, vociferarmos contra aquilo que é chamado de cultura de elite, deveríamos, ao contrário, reivindicar que a todos sejam dadas as oportunidades educacionais para que possam desfrutar dos prazeres do intelecto e da sensibilidade.
Que papel têm as celebridades midiáticas na constituição da nossa cultura hoje, no Brasil moderno?
Muitas celebridades alcançam esse status porque dispõem de talento, conseguiram realizar o que realizam porque, com seu talento, maior ou menor, chegaram na hora certa, no lugar certo. Assim são atores e atrizes, assim são alguns escritores e pensadores, assim são artistas, esportistas, cantores, top models etc. A pessoa se torna célebre porque, a partir dos seus feitos, adquire fama. Nem sempre a fama é arbitrária; é preciso lembrar, para que não se demonize a celebridade a priori. Certamente, há casos de celebridades passageiras que ganham fama momentaneamente em função de escândalos. Esse tipo de celebridade explode para durar o tempo de um relâmpago e logo cair no esquecimento. Quando, por outro lado, há algum tipo de mérito maior ou menor, mais ou menos relevante, que fertiliza a fama, a pessoa se transforma em notícia consumível que, neste caso, é notícia que só se esgota quando a fama entra no crepúsculo.
Portanto, há um ou alguns pontos de partida para que uma pessoa se torne uma celebridade: algum fato ou fatos funcionam como um estopim porque fisgam e cativam o público. Então, uma vez candidata prometida à celebridade, a mídia se apossa dessa vida e passa a se alimentar com voracidade de todos os seus passos, hábitos, desejos adivinhados, aparições públicas ou cenas privadas que são roubadas à distância. A vida comum é, via de regra, despida de encantos, surpresas, sofisticação, glamour e fantasia. O cotidiano é sempre profundamente constrangedor. Há uma personagem jovem no livro Pale Fire, de Nabokov, que morre sem explicação. Por que morreu? Resposta: porque comeu muita realidade. Assim funcionam a mídia e o público. Mas há o outro lado da moeda: a celebridade necessita da mídia. Sem ela, feneceria no esquecimento. Ambas são irmãs siamesas.
Aqui no Brasil, há muita semelhança com o funcionamento do binômio mídia-celebridade nos Estados Unidos: atores e atrizes estão sempre na crista, seguidos por cantores, jogadores etc. O contraste com alguns países da Europa é bem notável. Nestes ainda se vive a saudosa adoração do mito da aristocracia.
Por que as celebridades hoje, sejam as de nichos de internet, sejam as internacionais, exercem tanto fascínio entre nós? A sra. acha que esse fascínio cresce à medida que a cultura da mídia se torna hegemônica no país ou no mundo?
Não há separação nítida de conteúdos entre as mídias globais e a internet. Uma está atenta à outra. As mídias globais, que ainda persistem e continuam a ter muita força – veja-se a televisão aberta no Brasil -, prestam atenção a tudo que viraliza ou se movimenta no frenesi das redes. As redes, por seu lado – o twitter, o facebook e outras – comentam, criticam e dialogam, muitas vezes de modo conflituoso, com a grande mídia. Portanto, celebridades, pela força de atração que exercem sobre o público, têm presença contínua em todos os tipos de mídias. De onde vem o fascínio? As vidas das celebridades são vidas cobiçadas. Não apenas porque são célebres, mas por tudo aquilo de que a celebridade depende e que a celebridade traz: beleza (natural ou artificialmente conquistada) e, sobretudo, dinheiro, muito dinheiro, com tudo a que o dinheiro dá acesso: mansões imensas e suntuosas, hotéis luxuosos, descanso em paraísos que parecem ter descido dos céus à terra, roupas e joias de tirar o fôlego, séquito de empregados… Em suma, celebridades encarnam todos os valores que a sociedade de consumo elege como magnos e que todas as mídias não se cansam de veicular. Por quê? Sociedades de consumo são sociedades aspiracionais. Cada faixa de renda aspira e luta para ter aquilo que a classe imediatamente superior consome e assim por diante, em todas as escalas da sociedade. Esse é o fator de realidade. Entretanto, existe um outro fator que está fora da realidade para a imensa maioria das classes sociais: as fantasias do desejo. A divulgação da existência banhada em luxo das celebridades alimenta essas fantasias, ao mesmo tempo em que as fantasias funcionam como garantia para a continuidade da divulgação midiática, quer dizer, elas provocam consumo midiático garantido.
A sra. acha possível falar numa cultura de celebridades em tempos atuais? O que caracterizaria essa cultura?
Creio, sim, que se pode falar em uma cultura de celebridade, contando que nos expliquemos acerca do sentido que é dado a isso. Ou seja, não existe uma cultura da celebridade em si. Lembremos o meu mote: não há cultura sem comunicação tanto quanto não há comunicação sem mídia, assim como não há mídia sem linguagem. Portanto, pensar em uma cultura de celebridade significa lembrar que ela é construída nas mídias e pelas mais diversas mídias. Quanto mais a celebridade aparecer, nas variadas versões que as diferentes mídias a ela dá, tanto mais ela será celebridade. Pode-se até pensar na celebridade transmídia: ela aparece no jornal, nas capas de revistas que acenam para nós das bancas, nos programas de televisão aberta ou fechada, em matérias da internet na linha do tempo que abraça o passado, o presente e os prognósticos de futuro.
Qual é o valor da imagem no culto às celebridades?
Como poderia haver celebridade, com a força que hoje essa figura adquiriu na cultura, se não houvesse imagem? Especialmente porque grande parte das pessoas célebres, aliás, aquelas que mais fisgam a cobiça, são encarnações da beleza e da potência da juventude. Além da beleza são exemplos inimitáveis da liberdade de que gozam em relação ao seu desejo: amores que vão e que vêm no império efêmero das paixões não submetidas às conveniências dos afetos murchos. São as imagens que trazem à presença pessoas célebres às quais, sem elas, não se teria acesso. São as imagens que, sofregamente, são buscadas pelo público em virtude da promessa que elas encerram de proximidade com aquela pessoa que guarda seus segredos de privacidade por trás das imagens. Fotos e legendas, vídeos e comentários, matérias de jornal e revistas pontilhadas de fotos, programas de TV voltados para a exploração precípua da fama, tudo isso vai compondo uma densa e espessa signagem que é condição da celebridade. Quando a construção de signos, especialmente das imagens em torno de uma pessoa célebre, começa a rarear, a condição célebre vai fenecendo. A celebridade implica, de modo imperativo, ser continuamente lembrada, sempre presente na mente do público pela mediação das imagens e dos outros signos que rodeiam as imagens.
Mas por que e quando rareiam as imagens? Justamente porque rareiam os feitos que incitam as imagens. É por isso que atores precisam terminar um trabalho e começar o seguinte, cantores devem lançar músicas ininterruptamente, top models e jogadores desaparecem tão logo o viço e o preparo físico da idade prescrita os obrigam a se retirar. Certamente, há mudanças históricas. Tanto essas mudanças existem que a ascensão da figura social da celebridade só é explicável pela multiplicação de mídias que, dos jornais, fotografia, cinema, TV, vídeo, hoje culminam na internet, todas elas mídias veiculadoras e divulgadoras das figuras célebres. Daí se poder dizer que as mídias são condições sine qua non [obrigatórias] para a existência da celebridade.
A sra. acha que vivemos em uma sociedade de imagens, ou de superfícies, como preconizou Vilém Flusser (filósofo tcheco naturalizado brasileiro)? Como a sra. avalia esse fenômeno?
Que as imagens são superfícies, tese que Flusser explora com muita propriedade, não se pode negar. Mas que vivemos em uma sociedade de imagens é uma afirmação que me parece simplificada. Nunca se produziu tanto texto quanto no decorrer do século XX. Nunca se produziu e distribuiu tanto som quanto no último século. Foi o som, antes da imagem, que desafiou as mídias sonoras tradicionais. Basta pensar na invenção do transistor, no walkman, no MP3 e hoje na possibilidade de baixar, em frações de segundos, quaisquer músicas com que sonhamos. É certo que isso fere as leis dos direitos autorais, mas essa é uma outra história, que podemos deixar para uma outra vez.