Ivo Herzog fala sobre as heranças ainda vivas do governo militar

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ANITA EFRAIM | DEBORA BROTTO | ISABELA SOUZA | MARIANA STOCCO
Ivo Herzog é filho do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto na ditadura militar. Atualmente, é coordenador do Instituto Vladimir Herzog, cujo objetivo é o de desenvolver projetos culturais e educacionais com foco nas questões de direitos humanos e no desenvolvimento dos profissionais de jornalismo, entre outros. Confira a entrevista à Plural.
Com a retificação da certidão de óbito de seu pai, o que falta para haver Justiça no caso Vladimir Herzog?
A versão oficial já existe, tanto que a gente já recebeu uma certidão de óbito retificada. O que precisa ter é identificação e punição daqueles envolvidos na morte do meu pai. Eu acho que seria o fim de um tormento, o fim de uma sensação de injustiça. E a certeza que isso abriria o caminho para que outras famílias também pudessem ter justiça no caso de seus familiares.
Você acredita que há margem para que aconteça uma nova ditadura?
Não, não acho. Neste final de semana [22/3] houve a Marcha da Família em várias cidades do país, e acho que a maior delas tinha umas duzentas ou trezentas pessoas. É um processo até curioso, porque eles são a favor daquele regime que proibia manifestações. Então como é que eles fazem manifestações a favor de um regime que proíbe aquilo que eles estão fazendo? É um contrassenso. Mas é uma coisa interessante. Acho que é importante ter essas pessoas que pensam diferente. A democracia prevê a diversidade. Um regime em que todo mundo pensa igual a você é um regime fascista, ditatorial, não permite o diferente. Então a democracia precisa desse antagonismo, desse debate com pessoas que tenham ideias opostas, para que se discuta essas ideias, esses valores e assim se aprimore o processo da sociedade. Mas eu realmente não acho que exista espaço para um golpe militar no Brasil.

Foto: Débora Brotto

Você acredita que ainda há censura na imprensa?
De fato, há. Existe um grande museu em Washington, chamado Newseum, que é só sobre imprensa. Ele tem um mapa mundial que mostra se o país tem total liberdade de imprensa, parcial ou se falta liberdade. E o Brasil está como parcial. Quando fui lá, até fiquei surpreso e depois fui tentar entender o por que de estarmos dessa maneira. E a gente sabe que estamos dessa maneira. Nós temos a questão do filho do Sarney censurando o Estadão. A gente tem artista que quando vai sair uma matéria sobre ele, consegue mandatos judiciais que proíbem a veiculação da matéria. Então existe sim, infelizmente, uma censura. A Lei de Imprensa caiu no Brasil há alguns anos, mas deveria haver uma regulamentação, o que não é censura. Por exemplo, direito de resposta não está regulamentado.
A falta de uma lei – as pessoas confundem muito isso – é confundida com a irresponsabilidade de que você pode publicar o que quiser. Um bom jornalista é aquele que tem um bom senso ético, que sabe até onde pode ir. Isso não dá para legislar, mas espero que falem muito disso nas faculdade de jornalismo. O bom jornalista é aquele que consegue fazer uma boa matéria sem desrespeitar o contexto, o entorno. Existem poucos bons jornalistas hoje em dia, infelizmente.
Os grandes veículos de comunicação, na época da ditadura, foram em alguns casos cúmplices do governo. Como você considera a relação da aceitação da população civil e o contexto de milagre econômico da época?
O milagre econômico vem um pouco depois, já na década de 1970. Na realidade, existia aquela propaganda sobre o medo do comunismo. Essa é uma das épocas mais ricas em termos de conteúdo, de transformações. O grande empresariado estava assustado e estava com medo das grandes reformas econômicas que já vinham desde a época de Juscelino. Quando se cria uma situação favorável na direção desses interesses econômicos, há esse apoio civil dos empresários e das classes média e média-alta.
O que se entende hoje é que mesmo esses civis foram, até certo ponto, traídos. Entra um governo militar de maneira muito mais truculenta do que era esperado e que olha mais para a questão deles do que de certos grupos empresariais. A gente tem vários empresários conhecidos que apoiaram o golpe e que na sequência entraram para um processo de oposição, porque não era aquilo que eles queriam. Eles não queriam um AI-5, que tira todos os direitos das pessoas, queriam a proteção do Estado e o Estado pode tudo contra o indivíduo. Então é muito complicado. Houve empresas que deram apoio de logística, mas que logo saíram dessa e começaram a se proteger. Então, a gente tem que entender, colocar no contexto. Mas tem grandes empresários que apoiaram até o final e financiaram a Operação Bandeirantes (OBAN), que tinha como objetivo dizimar os opositores, como fez com o Partido Comunista.
Como você vê a retratação desses grandes veículos?
Eu acho que é importante. O mundo muda. O que não pode é deixar de saber as coisas que efetivamente acontecem. Mas também não é só pra fazer um mea culpa, é para trazer também o que aconteceu. Eu acho que talvez esse seja o maior desafio. Por exemplo, a Folha mostrar seus caminhões que foram cedidos para a OBAN, não ter medo dessa história. As pessoas confundem o conhecimento da história com vingança, com revanchismo. O conhecimento da história é uma ferramenta para evitar que os erros se repitam, para que a gente evolua como cidadão.
O senhor acha que falta uma retratação oficial das Forças Armadas?
Com certeza. O problema é que eles ainda não acreditam que houve um golpe. Eles falam em Revolução de 64. Pior que isso é que eles ensinam isso até hoje nas escolas e eu acho que isso é uma coisa muito mal resolvida, pois dentro desse processo a gente cria a polícia mais violenta do mundo. Uma polícia discriminatória. Na época da ditadura, nos 21 anos, entre mortos e desaparecidos oficiais são em torno de 450 pessoas, mortas por agentes do Estado. De 1985 para cá, são 29 anos, são 10 mil mortos e desaparecidos, assassinados pela polícia no Brasil. Enquanto a gente não mexer nessa estrutura de polícia, nessa estrutura militar, nós vamos viver em um mundo muito complicado.