PRICILLA COMAZZETTO | GABRIELA BERALDO
Enquanto dormia, dentro de casa, em São Paulo, ela foi vítima de um tiro nas costas e ficou paraplégica. O agressor era o seu então marido, que simulou um assalto no intuito de matá-la. Mais tarde, sofreu uma segunda tentativa de homicídio. Desta vez, o ex-companheiro tentou eletrocutá-la.
A partir de então, a luta da cearense Maria da Penha pela própria vida se tornou também uma luta contra a agressão às mulheres de todo o país.
Nascida em 1945 e formada em farmácia e bioquímica, Maria da Penha hoje coordena o instituto que leva o seu nome. Uma de suas principais missões é zelar pela defesa e cumprimento da Lei Maria da Penha, promulgada em 2006 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que criminaliza a violência doméstica.
Alerta e ativa aos 69 anos de idade, Maria da Penha diz que a lei é sistematicamente ameaçada pela “cultura machista” de juízes e gestores públicos e que é preciso defendê-la para evitar um imenso retrocesso.
Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida com exclusividade à revista Plural.
A sra. foi vítima de agressões sistemáticas de seu ex-marido. Como foi isso?
Ele era uma pessoa querida, muito bem vista por todos da nossa turma, prestativa. Mostrava-se educado. Era tudo o que toda mulher sonha para casar, uma pessoa muito companheira. Só que depois da sua naturalização [o marido era colombiano, professor universitário], que aconteceu uns quatro anos depois de eu estar com ele, ter namorado com ele, ter casado e ter a minha filha [a primeira de três que o casal teve], ele mostrou a sua verdadeira face, porque conseguiu a naturalização.
Então eu não mais conseguia entender aquela pessoa que eu havia conhecido. Ele se tornou uma pessoa muito agressiva, inclusive com a própria filha. Eu solicitei então várias vezes que a gente se separasse, que não havia mais condição de vivermos juntos, pois não havia mais diálogo, amor, respeito. Mas ele sempre recusou essa separação.
Em maio de 1983 ele atentou contra a minha vida através da simulação de um assalto. Foi descoberto depois pela Secretaria de Segurança Pública que o assalto foi uma simulação que ele fez para me incapacitar.
Só que eu não morri.
Como foi o episódio?
Primeiro eu levei um tiro [nas costas, enquanto dormia]. Passei quatro meses hospitalizada. Quando eu voltei para casa [ela ficou paraplégica com o tiro], ainda acreditando na versão do assalto, eu fui mantida em cárcere privado e tive que providenciar um documento judicial de separação de corpos para poder sair de casa com minhas filhas, para não caracterizar abandono do lar e conseguir manter a guarda.
Nesse período em que eu estava em casa eu sofri uma segunda tentativa de homicídio através de um chuveiro elétrico que foi propositadamente danificado por ele. Eu tive a sorte de não ser eletrocutada. E quando o documento judicial chegou, coincidiu de ele estar viajando e eu saí de casa com as crianças e fui para a casa dos meus pais.
Como surgiu a Lei Maria da Penha?
Depois que eu saí de casa, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu a nossa denúncia e enviou ofícios ao Brasil solicitando uma posição sobre o meu caso. Em nenhum momento o Brasil respondeu. Então foi feito um relatório cobrando mudanças legislativas no país para evitar a alta impunidade e alto índice de assassinato de mulheres. Em virtude dessa recomendação da Organização dos Estados Americanos (OEA) o Brasil teve que trabalhar uma lei – baseada inclusive em tratados internacionais já assinados. Foi criada a lei 12.340, que foi chamada de Lei Maria da Penha como uma homenagem simbólica a mim, por ter sido o meu caso e a minha persistência, a minha luta por justiça, que resultaram na criação da lei.
Dar nome à lei é uma grande responsabilidade, não?
Muito compromisso, muita responsabilidade. Eu praticamente não tenho mais vida pessoal. A minha vida é essa: dar entrevista, participar de encontros, contar minha história de vida nessas palestras. Então eu sou totalmente voltada para essa pauta.
O que falta para que a violência contra a mulher seja erradicada?
A lei pensou em todos os detalhes, principalmente tendo como finalidade a própria ação da mulher em caso de violência doméstica e depois a punição do homem agressor. Na realidade, a nossa cultura é muito machista e essa cultura interfere na verdadeira aplicação da lei. Somente no ano passado todas as capitais do Brasil conseguiram ter um juizado que atenda casos de violência doméstica. A dificuldade de criar os equipamentos que a lei exige para funcionar corretamente é enorme, porque os gestores públicos possuem essa cultura machista que dificulta a criação de políticas públicas [de defesa da mulher].
Essas políticas públicas a que me refiro são delegacias da mulher e centros de referência da mulher em situação de violência doméstica – que é um local em que a mulher vai se orientar, se fortalecer e tomar conhecimento de como sair daquela situação, com atendimento sociojurídico e psicológico. [Sem o apoio do centro] as mulheres agredidas vão diretamente à delegacia e ficam em dúvida se devem ou não denunciar o seu agressor.
Outra política pública é a casa-abrigo, onde as mulheres que não podem retornar para casa podem ficar com seus filhos menores. A outra política pública seria a criação dos juizados. Existe sim a dificuldade por conta da cultura machista dos gestores públicos, porque se assim não fosse nós teríamos mais municípios equipados com essas instituições que atendem a efetivação da lei.
O que mais pode ser feito, além disso?
Existe uma recomendação da OEA, ainda pouco atendida, que é introduzir na educação o respeito à mulher, inclusive capacitando a rede de docentes para que esses professores e professoras possam identificar e esclarecer essa questão junto aos alunos.
É importante que isso aconteça no ensino fundamental para que as pessoas se conscientizem de que bater em mulher é crime, porque muitos desses alunos e professores foram criados em um ambiente de violência no qual o pai batia na mãe, o avô batia na avó, e isso é considerado normal para essas famílias que vivenciaram essa questão dentro de suas casas.
No ano passado o Ipea divulgou que as mortes de mulheres por violência doméstica não diminuíram desde a criação da Lei Maria da Penha. Ainda assim, a sra. acha que a lei teve um impacto positivo na sociedade brasileira?
Essa estatística não considera que até o ano passado não existiam os equipamentos da lei em todos os Estados, e na maioria dos municípios não existe [essa estrutura]. Como você pode ver se a lei deu ou não resultado se não existe a implementação dela? Se todos os grandes municípios estivessem equipados com essas instituições que fazem a lei funcionar, com certeza o resultado não seria esse.
Se a mulher sofre violência doméstica e não tem onde denunciar, ela está sujeita a ser assassinada. Não foi feito também um trabalho relativo de ver os Estados em que a política pública foi criada e analisar qual a diferença entre os dados anteriores e posteriores à lei. Cidades onde não há nenhuma delegacia da mulher, cidades que só têm uma delegacia da mulher e cidades, que geralmente são as capitais, estruturadas com delegacia da mulher, centro de referência e casa-abrigo.
Neste ano vieram à tona vários episódios de violência contra a mulher, como o caso dos encoxadores nos metrôs. O brasileiro é machista?
Quanto mais populosa e evoluída a cidade, mais essa conscientização existe. Temos encontrado nesses locais mulheres lutando pela implementação da lei. Encontramos professoras que sozinhas levantaram esse problema na sala de aula, recebemos inclusive redações de alunos.
É importante que a gente encontre homens e mulheres envolvidos nessa luta, porque só assim vamos garantir um futuro sem violência para nossas descendentes. Perante as estatísticas, nenhuma mulher está livre da violência doméstica. A filha de um grande magnata pode ser vítima de violência doméstica. E esse grande magnata não vai possivelmente tomar conhecimento de que a sua filha é vitima de violência doméstica porque ela quer que aquele companheiro agressivo volte a ser o que era antes, e ela não vai se expor para a sua família. E talvez quando o pai, o grande magnata, chegue a saber que a filha sofre violência doméstica, talvez seja por conta de um assassinato.
Diversos coletivos feministas lutam hoje pela igualdade de gêneros, como o projeto “Chega de Fiu Fiu” ou até a própria Marcha das Vadias. A sra. acredita que esse tipo de ação tenha um efeito positivo na sociedade?
Na verdade eu não tenho acompanhado esse movimento. Eu tenho me concentrado muito na questão apenas da lei. Já quiseram desestruturar a lei, anular a lei. Sempre há alguém que, pela cultura machista, tenta minimizar a questão da violência doméstica. Então a gente tem que ter uma atenção muito especial em relação a isso e eu recebo muitas denúncias da atitude de juízes a respeito disso. A gente tem conhecimento de um caso ou outro de juízes, pessoas da Justiça, que passam a mão na cabeça da agressor, quando se sabe que todo e qualquer crime contra a mulher tem que ser punido.
O que falaria para as mulheres que não têm coragem de denunciar o agressor?
Não é porque ela vai denunciar que ela vai ser assassinada. É muito mais provável que ela seja salvaguardada no momento que ela denuncia e toma a atitude de não retornar a viver aquele ciclo da violência. Então, coragem é necessário ter. Ela pode procurar através de outras mulheres que fizeram o mesmo percurso, ela pode procurar o centro de referência, uma associação de mulheres. Procurar se fortalecer e saber que é difícil para muitas mulheres, mas que não é impossível sair dessa situação em que você é um verdadeiro capacho na mão desse homem.