A mulher que mudou o jogo

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Helena Fortunato e Sophia Olegário (4º semestre)

Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe? O assassinato de Marielle Franco revelou uma face de um país que tenta silenciar as vozes de quem luta por mudança. Marielle Franco, nascida em 27 de julho de 1979 e criada no Complexo da Maré, dedicou sua vida ao acolhimento das minorias desprezadas pela sociedade. Por trás de uma figura tão emblemática e empoderada como vereadora, existia a filha da dona Marinete, a mãe da Luyara, a esposa da Mônica e a amiga da Taliria, da Dani e da Renata – as três foram eleitas deputadas do Rio e carregam o legado de Marielle como inspiração.

O desejo de retratar não só a morte brutal, expondo as falhas do sistema político do Rio de Janeiro, mas também de registrar quem era Marielle no dia a dia, criou a ideia de produção da série-documental Marielle: o documentário, lançada pela Rede Globo no dia em que o assassinato dela completou dois anos. Eliane Scardovelli, roteirista da série e repórter do Profissão Repórter, pôde mergulhar na intimidade de Marielle e, mesmo não tendo a chance de entrevistá-la, traçou seu perfil de forma fiel, a partir do olhar de carinho e respeito de seus familiares e amigos. “Foi a primeira vez que conheci uma pessoa depois de morta. Eu tinha a sensação de que conhecia Marielle, mas comecei a entender muito além do símbolo que ela se tornou. Passei a entendê-la como mulher quando conheci seus ambientes de intimidade.”

A irmã de Marielle, Anielle Franco, contou à Plural que sua irmã era uma mulher forte e, ao mesmo tempo, afetuosa, que não dava nenhum passo atrás na defesa dos ideais dela – “característica de muitas mulheres negras” –, mas que sempre recebia todos com um sorriso enorme. “Uma memória muito forte que tenho dela foi do dia que uns meninos não queriam me deixar jogar vôlei e ela entrou na quadra, tirou a bola deles e os isolou longe para dar um recado bem dado. A gente se divertia muito juntas e cuidava muito uma da outra”, completou.

A vida política de Marielle começou quando ela ainda era muito jovem. Logo depois de perder uma de suas amigas, vítima de bala perdida num tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo da Maré, Marielle decidiu se dedicar à militância pelos direitos humanos e contra a violência policial. Socióloga formada pela PUC-Rio e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Marielle integrou a equipe da Comunidade da Maré, participando ativamente, em 2006, da campanha do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), considerado o seu padrinho político. Com a posse de Freixo, Marielle foi nomeada assessora parlamentar do deputado, continuando no cargo pelos dez anos seguintes.

Em 2016, pela coligação Mudar é Possível – formada pelo PSOL e pelo PCB – Marielle venceu sua primeira disputa eleitoral, e foi eleita vereadora na capital fluminense. Com 46 mil votos, foi a segunda mulher mais votada do Brasil em 2016. Durante o cargo, ela presidiu a Comissão da Defesa da Mulher e integrou também uma comissão que tinha como objetivo fazer o monitoramento da intervenção federal no Rio de Janeiro. Além disso, Marielle redigiu e firmou 16 projetos de lei, como por exemplo #assédionaoépassageiro, Lei das Casas de Parto, Espaço Coruja/ Espaço Criança, Pra Fazer Valer o Aborto Legal no Rio e a inclusão do Dia da Visibilidade Lésbica no calendário oficial do Rio (reprovado por apenas dois votos).

Marielle promovia e organizava rodas de conversas com o intuito de levantar pautas que julgava necessárias. “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”, citou Marielle em sua frase final em um desses eventos, que estava sendo transmitido ao vivo nas redes sociais. A frase pertence a Audre Lorde, escritora americana, negra e lésbica. Marielle foi assassinada com quatro tiros na cabeça minutos depois.

Na noite do dia 14 de março de 2018, uma quarta-feira, Marielle estava voltando de um evento na Casa das Pretas quando o carro em que ela estava foi atingido por 13 tiros. Anderson Gomes, o motorista do carro de Marielle, também foi morto. Um ano depois do assassinato, foi descoberto que o crime estava sendo planejado havia cerca de quatro meses. O sargento Ronnie Lessa foi apontado como autor dos tiros, e o ex-policial Élcio Queiroz, acusado de ser o motorista do carro de onde foram dados os disparos. Ambos foram presos em março de 2019. Em outubro do ano passado, foi decretada uma nova prisão, a de Josinaldo Lucas Freitas, acusado de esconder as armas usadas no crime. Em maio de 2020, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o caso não deveria ser federalizado, já que isso poderia facilitar interferência política na investigação.

O crime teve repercussão internacional, e a prisão de Élcio e Ronnie foi matéria de diversos veículos jornalísticos no exterior, como por exemplo o The New York Times, que inclusive identificou o crime como sendo um “descarado assassinato político”. Desde a morte de Marielle, todos os seus amigos e familiares, assim como uma grande parte do Brasil, esperam por uma resposta. Eliane, produtora do documentário sobre a vereadora assassinada, ainda ressalta que “infelizmente, desde que o documentário foi produzido até agora, pouco se encaminhou”. Ela reforça também que o documentário serve para as pessoas que atrelam Marielle e seu assassinato a uma pauta de esquerda – por conta das bandeiras que abraçava e representava – mudem o olhar e reconheçam a brutalidade envolvida no crime. “É uma vida, uma mulher incrível, independentemente da sua orientação política”, acrescenta.

Mas a trajetória de batalha de Marielle não se encerrou com o crime que aconteceu no dia 14 de março de 2018. A sua luta levantou pautas necessárias sobre mulheres, negros, comunidade LGBT e favelas, colocando-as em evidência em meio a uma sociedade tão desigual. Sua execução não arrancou as sementes que havia plantado. Dessa forma, o seu legado permanece intacto. Inspirou mulheres como Talíria Petrone, Renata Souza e Dani Monteiro a ocuparem cargos de poder dentro da política e outros incontáveis jovens a reconhecerem seus direitos e lutarem por eles. Ainda hoje espera-se por uma resposta: quem mandou matar Marielle?