Crise de representação será duradoura, avalia FHC
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foto: Acervo Instituto Presidente Fernando Henrique Cardoso
RENATO ESSENFELDER – editor da Plural | LARA DE OLIVEIRA SANTOS
»»» A crise de representatividade não só existe como deve perdurar por anos, e os governantes terão de se adaptar a essa nova realidade. A opinião é de um dos intelectuais mais influentes do país, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que em entrevista à Plural analisa as manifestações que eclodiram no país desde junho deste ano.
Hoje os governos “têm de prestar contas a um número muito maior de pessoas” e “o tempo da resposta governamental se encurtou”, aponta. O resultado desse choque é um aumento de tensão no exercício do poder.
Para ele, o maior benefício ocasionado pelas manifestações “foi mostrar que a sociedade brasileira não perdeu a sua capacidade de mobilização coletiva no mundo real”. “Manifestações de massa têm maior capacidade de mudar o clima político de um país.”
Ressaltando que acha inaceitável o uso da violência como instrumento político, FHC afirma que o maior risco no momento atual é justamente que esses movimentos “não se traduzam em formas mais permanentes de ação política ou que de generem em formas violentas de protesto por uma minoria”.
Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida à revista Plural.
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Que razões levaram o fenômeno das manifestações a eclodir em junho de 2013?
A mobilização de um grupo em torno do preço da passagem de ônibus tocou em um nervo exposto da vida nas grandes cidades brasileiras: a má qualidade do transporte público, uma questão que afeta milhões de pessoas. Na essência, o transporte público não é diferente da saúde, da educação etc. São direitos assegurados pela Constituição, como responsabilidade do Estado. É assim que está na Constituição e é assim que as pessoas veem essas questões.
Quando a polícia se excedeu na contenção de grupo de manifestantes do Movimento Passe Livre [MPL], generalizou-se um sentimento de indignação: o Estado não cumpre as suas responsabilidades e, além disso, reprime com violência os que se manifestam contra isso. Houve uma identificação com os manifestantes: eles estão dizendo algo que gostaríamos de dizer também. Não é que tenha se formado um consenso em torno das bandeiras do MPL. É que a manifestação deles passou a ser vista como um protesto genericamente justo, injustamente reprimido.
Como estávamos às vésperas da Copa das Confederações, a insatisfação social latente, além de uma “causa” (o transporte público) traduzível em muitas outras (saúde, educação etc), ganhou um símbolo às avessas (os belos estádios, financiados com recursos públicos).
O sr. viveu de perto o Maio de 1968 na França, inclusive foi professor de líderes do movimento estudantil. Vê semelhanças entre aquele movimento na França e o atual, no Brasil?
A semelhança está na surpresa das manifestações. Mas Maio de 1968 tinha um componente utópico muito mais forte. Uma parte alimentada pelo movimento da contracultura, outra pela radicalização de um setor jovem da esquerda europeia, contra a linha reformista dos partidos comunistas e socialdemocratas.
Não havia insatisfação econômica na Europa, nem nos Estados Unidos. Estávamos no auge dos chamados “trinta anos gloriosos”, o período entre o final da Segunda Guerra Mundial e a crise do petróleo, em 1974. Os países desenvolvidos cresciam e distribuíam renda.
No Brasil, houve crescimento e alguma distribuição da renda, mas a partir de um patamar mais baixo, muito mais baixo. O acesso a bens de consumo aumentou. Mas a qualidade dos serviços públicos não acompanhou esse processo (é mais fácil expandir o mercado do que reformar o Estado). As pessoas têm celular, mas levam horas em ônibus lotados e esperam semanas, meses por uma consulta médica. Esses problemas inexistiam em maio de 1968 na Europa. [Hoje,] nas grandes cidades brasileiras, mesmo quem não padece diretamente desses problemas, sofre as suas consequências.
Há uma utopia também nas manifestações brasileiras? Qual?
Há uma demanda social por melhores serviços do Estado, por uma vida urbana menos desgastante e por políticos que tenham mais compostura e sentido de missão pública. Essa é a utopia. Os grupos mais ideológicos são minoritários nas manifestações. O que as pessoas querem é melhorar o uso dos recursos públicos. Há uma percepção crescente de que esse dinheiro é produto dos impostos. As pessoas querem saber como e onde são utilizados o meu, o seu, o nosso dinheiro.
Os governos, em geral, fazem propaganda de suas ações e falam mal dos seus antecessores e adversários. Deveriam confiar mais na capacidade de entendimento das pessoas e dar mais explicações: onde vai o dinheiro, com que objetivo, por que foi possível fazer isso, por que não foi possível fazer aquilo, que medidas tomar para corrigir o que deu errado e consolidar o que deu certo etc. A sociedade brasileira amadureceu, está mais instruída, atenta e informada. As formas de fazer política precisam acompanhar esse amadurecimento.
Quais as diferenças entre os manifestantes de 1968 e os atuais?
Os manifestantes do Maio de 1968 eram jovens de uma classe média já bem estabelecida. Aqui a maioria pertence a uma classe média em emergência, que ainda vive com muitas incertezas em relação a sua posição social. Ganharam acesso a bens de consumo, mas querem maior acesso a bens públicos e a um ambiente urbano mais humano.
O sr. acredita que há uma crise de representação no Brasil? Em que medida é um fenômeno brasileiro e em que medida é mundial?
É muito mais difícil governar e representar a sociedade do que foi no passado. Isso é mundial. Um livro recente trata dessa dificuldade. Tem o título “The End of Power”. O autor é o Moisés Naim, que foi editor da revista “Foreign Policy”. Ele fala exatamente sobre como hoje o poder é mais frágil e suscetível a crises e questionamentos. Nos países importantes, hoje já não se governa mais para uma pequena elite. Os governos têm de prestar contas a um número muito maior de pessoas (o direito a votar praticamente universalizou-se). E o tempo da resposta governamental se encurtou (não são somente os mercados financeiros que exigem respostas rápidas, é todo um sistema de comunicação social que imprime um ritmo quase frenético ao exercício do poder).
Além disso, os países importantes estão interconectados na economia global e as sociedades e indivíduos desses países também estão interconectados entre si. Os governos nacionais são hoje afetados por eventos que ocorrem fora de suas fronteiras, com uma frequência e velocidade muito maiores do que no passado.
As sociedades se tornaram muito mais complexas. Os interesses que querem ser representados no Estado se diversificaram muito não apenas porque as formas de trabalho e de propriedade se multiplicaram, mas também porque as identidades sociais relevantes já não se resumem a duas ou três variáveis socioeconômicas, mas incluem identidades de gênero, preferência sexual etc.
A “crise de representação” é parte intrínseca desse mundo em que vivemos. Ela é agravada quando e onde há organizações sociais e políticas mais fracas para agregar os interesses e representá-los junto ao Estado e onde e quando o Estado é capturado por grupos de interesse com muito poder político e baixa representatividade social.
Então essa crise de representação tende a ser duradoura?
Será duradoura. Demorou décadas para que partidos e sindicatos se consolidassem como formas de representação nas democracias de massa nos países desenvolvidos. Hoje, partidos e sindicatos já não são capazes de dar conta da representação da sociedade junto ao Estado, nem nos países desenvolvidos, menos ainda nos em desenvolvimento, em cuja maioria a representação política esteve sempre mais sujeita a grupos oligárquicos ou movimentos populistas.
Hoje, a sociedade é muito mais complexa do que eram as sociedades industriais típicas que se desenvolveram ao longo do século 20. Estas tinham uma grande concentração de trabalhadores no setor fabril, uma classe média de pequenos proprietários, servidores públicos e umas poucas profissões liberais (médicos e advogados) e uma burguesia composta de proprietários de algumas grandes empresas nacionais.
Atualmente, o mundo do trabalho explodiu em milhares de atividades diferentes, com a expansão dos serviços e a diminuição da indústria. As atividades se transnacionalizaram. As pessoas não só trabalham em um número muito maior de empregos ao longo de sua vida de trabalho, como mudam muito mais de lugar, inclusive de país. Antes, havia meia dúzia de fontes de informação. Todas as pessoas de classe média escutavam as mesmas emissoras de rádio, liam os mesmos jornais e assistiam aos mesmos programas de TV. Como representar uma sociedade tão mais complexa e dinâmica do que no passado, que cria, desfaz e recria com muita frequência redes de comunicação, interesse e identidade nas mídias sociais? Vai demorar para que novos modelos de representação se estabilizem. Enquanto isso, vamos continuar falando em “crise de representação”.
A crise de representação seria limitada à política partidária ou se estenderia a campos como a família, igrejas, sindicatos, mídia etc.?
Ela é mais extensa e isso tem a ver com o desejo dos indivíduos de representarem a si mesmos. Há uma resistência a delegar essa representação a um intermediário. Quanto mais distante esses intermediários estejam, maior a resistência. É o caso dos partidos, que se afastaram da vida social e passaram a ter vida quase autônoma no mundo político.
O sr. se sente representado por instituições hoje vigentes? Seu partido, o PSDB, representa o sr.?
Eu sou crítico das instituições, inclusive do meu partido, quando me parece caber a crítica, mas eu sou consciente da importância das instituições para a organização da vida em comum. E acredito que os partidos continuam a ser uma forma indispensável da representação política na democracia.
A mídia tradicional tornou-se alvo dos manifestantes. Como o sr. enxerga esse fenômeno e que relação vê com a expansão da internet e de redes sociais?
A mídia tradicional às vezes é vista como sócia do poder e não como instrumento de vigilância do poder e informação da sociedade. Já a mídia social – não organizada na forma de empresas – apresentaria um retrato mais fiel da realidade, um espaço no qual a sociedade poderia ver a si mesma, sem a intermediação da grande imprensa. Trata-se de uma visão ingênua, a meu ver.
Primeiro, porque desconsidera que há muita manipulação deliberada nas mídias sociais. Segundo, porque confunde profusão de mensagens e informação com jornalismo. Jornalismo requer organização e recursos estáveis, exige experiência por parte de quem o exerce, exige que a notícia seja apurada antes de ser veiculada, que os fatos sejam colocados em contexto e em perspectiva. As novas mídias enriquecem a atividade jornalística organizada em bases estáveis, mas não podem substitui-la.
Quais são os possíveis benefícios e potenciais riscos advindos das manifestações?
O maior benefício foi mostrar que a sociedade brasileira não perdeu a sua capacidade de mobilização coletiva no mundo real. Uma coisa é assinar um manifesto na internet, outra é juntar-se na rua para protestar coletivamente. A intensidade emocional desta é muito maior do que a daquela. Manifestações de massa têm maior capacidade de mudar o clima político de um país.
O risco é que não se traduzam em formas mais permanentes de ação política ou que degenerem em formas violentas de protesto por uma minoria.
Como o sr. avalia a chamada tática black bloc de manifestação? Ela estaria esvaziando o apoio popular aos protestos?
Os black blocs servem como um alerta e, nessa medida, é preciso tentar compreender os sentimentos que são capazes de mobilizar. Mas é claro que não se pode permitir a destruição do patrimônio público ou privado. Além do patrimônio, a violência destrói o espaço democrático de manifestação pacífica. Esse espaço precisa ser assegurado.
O sr. considera os adeptos do black bloc anarquistas? Por quê?
Parecem ser vagamente anarquistas. Mas não acho que esse seja o ponto central. O que interessa conhecer é a trajetória de vida, a motivação dos que aderem aos black bloc. E isso nada tem a ver com a ideologia anarquista.
Em artigo no jornal “O Estado de S. Paulo”, o sr. afirmou que desqualificar os protestos de São Paulo é um “grave erro”. No entanto, condena a violência crescente entre adeptos do black bloc. Como equacionar isso?
O erro está em simplesmente estigmatizá-los sem buscar entender como e por que eles se mobilizam da forma pela qual se mobilizam. Entender não significa justificar e deixar de reprimir as ações que praticam.
Como o sr. encara o emprego da violência como instrumento político?
No Estado democrático de direito, acho inaceitável.
O sr. acha que a forma de fazer política mudará no país após a onda de protestos ou há uma tendência à acomodação?
O processo será longo, pois se move no tempo da mudança cultural. Os líderes políticos, porém, podem acelerar esse tempo tomando medidas concretas. O importante não é fazer com estardalhaço. É ter e realizar medidas dentro de um programa consistente, de longo prazo, no sentido de dificultar e punir as velhas e promover novas e melhores práticas políticas
A teoria da cordialidade do brasileiro é abalada por esses protestos?
A ideia de que o brasileiro é cordial, elaborada pelo Sergio Buarque de Holanda, lá nos anos 30 do século passado, não é a de que o brasileiro seja um ser pacífico, incapaz de violência. A tese do Sergio é de que o brasileiro se pauta pelos afetos ligados às relações pessoais, do amor ao ódio, não apenas no âmbito da família, mas também da vida social mais ampla.
O contraste que ele buscava estabelecer era com sociedades em que os indivíduos se pautam por regras externas às relações pessoais, regras que são assimiladas e passam a ser um código implícito, não escrito, de conduta. Sergio dizia, com razão, que a democracia, que supõe a aplicação impessoal de um sistema de regras, não encontra terreno fértil em uma sociedade regida por relações cordiais, no sentido que ele deu ao termo. O pressuposto da democracia é de igualdade de todos perante a lei. Quando os manifestantes pedem o “fim da impunidade” é isso que eles estão pedindo.
O sr. já afirmou que os partidos políticos precisam se aproximar do povo. Como poderiam fazer isso?
Colocando-se em diálogo com os inúmeros grupos de representação da sociedade, em especial os jovens, para aproximar o mundo da política do mundo da vida. A grande maioria dos partidos não faz isso organizadamente. E quem faz tem a intenção de cooptar os interlocutores, torná-los militantes partidários.