Henrique Campos Guerra, Laura Margutti,
Lorena Valeri e Manuela Kara (3º semestre de Jornalismo)*
* Trabalho realizado para a disciplina de Grande Reportagem, sob orientação do professor Antonio Rocha Filho
Introdução
No dia 18 de março, fomos à casa de Sérgio Gomes com a intenção de entrevistá-lo para o podcast Mataram o Vlado, que falava sobre a história de Vladimir Herzog –notável jornalista morto durante a tortura na ditadura brasileira. Sabíamos que Sérgio fora torturado durante o regime militar por ser um jornalista e filiado do Partido Comunista Brasileiro, além de também ter sido amigo de Herzog. Entretanto, não sabíamos que o que nos esperava era um verdadeiro “figura”, cheio de histórias para contar, uma casa atípica na zona sul de São Paulo e muitos ensinamentos a transmitir. Serjão impactou cada um desta equipe de maneira específica, além de ter sido um processo de apuração extenso em que cada integrante participa em diferentes momentos. Por isso, queremos neste texto transmitir quem é Sérgio Gomes com base em interpretações e relatos individuais que, de certa forma, se tornam coletivos.
Capítulo 1: Primeiras impressões
Manuela
Quando eu primeiro vi Sérgio Gomes, me encantei por sua figura. Estava assistindo ao documentário Vlado 30 Anos Depois, mais ou menos há um ano. Assim que bati o olho em seu bigode e cabelo longo, classifiquei-o como visivelmente comunista, provavelmente por o ter assemelhado à imagem de Karl Marx. Na minha concepção, é a este filme do jornalista e cineasta João Batista de Andrade a que se deve essa reportagem. Fomos entrevistar Sérgio não para uma grande reportagem sobre ele, um notório militante pela luta democrática, mas por sua proximidade com o caso Herzog. Foi reassistindo ao documentário que pensei no nome de Sérgio que, por sua aparência familiar e falas certeiras, que não tentam romantizar um assunto grotesco, havia ficado marcado em minha memória.
Eu desconfiava da personalidade forte de Sérgio, mas a cada interação minhas suspeitas de que ele seria um grande entrevistado apenas cresciam. Quando a Laura entrou em contato com ele por telefone, muito nos divertimos pelos seus maneirismos causados pela idade. Estávamos em um grupo de cinco jovens fazendo contato com um senhor pelo Whatsapp. Nos divertimos com a pontuação excessiva para os nossos padrões minimalistas, com o uso “inapropriado” do capslock e os espaços duplos acidentais.
Marcamos a entrevista para o dia 18 de março na casa do jornalista. Partimos da ESPM– faculdade onde estudamos– depois da aula de Grande Reportagem, já com a pulga atrás da orelha se não era o caso de fazermos um trabalho só sobre ele. Sinto que, no Uber até o Brooklin, nos deslocamos no espaço e tempo: a casa destoa do restante do bairro nobre. Uma casa cujos muros não passam do meu joelho faz frente a uma propriedade cercada por uma sólida parede branca de mais de três metros. Com a autorização do dono, pulo o miniportão de gradil azul, onde um jardim verde que destoa da cinzenta capital espera por mim. No interior da casa dois elementos me chamam atenção: um piano e um divã, que me colocam a passear por cenas de possíveis tardes de domingo naquela sala.
Sala de estar da casa de Sérgio Gomes. Foto: Laura Margutti
Sérgio abriu a casa para a gente como se o tivesse feito outras milhões de vezes. “Se um dia um profissional se recusar a ajudar um jovem, ele não é um profissional de verdade”. A fala do jornalista diz muito sobre o jeito que ele age. Em cada momento que estive com ele, Serjão fez questão de me ensinar. Nada adepto da nova “educação positiva”, Sérgio aponta todo e cada erro que cometemos. Como se ele fosse um parente, um que sempre depositou boas esperanças nos meus estudos e eu o tivesse decepcionado. A sensação é horrível, sinto como se tivesse decepcionado alguém que não merecia tamanha frustração, mas ao mesmo tempo tenho agora uma coleção de novos motivos para me dedicar a esse trabalho.
Além de seu cigarro, que fumou um atrás do outro, outro elemento que se mostrou um grande personagem foi seu telefone. Nenhuma dúvida fica sem resposta: se quer falar sobre um assunto que julga não dominar, liga para um especialista e faz tantas perguntas quanto desejar. Se lembra de alguém que pode nos ajudar, liga pra pessoa e faz com que a gente se apresente. Em dado momento liga para um amigo e o questiona sobre casos de dengue no país. Ao sair do telefone, frustrado com a ligação, lamenta: “Ele nunca mais foi o mesmo depois da covid”. A frase mexe comigo, não curto o confronto com a realidade. As pessoas com as quais eu tenho tanto a aprender estão sujeitas à passagem do tempo.
Em dado momento, Sérgio nos convida a assistir com ele a aula magna de jornalismo na ECA (Escola de Comunicações e Artes). A oportunidade acende um brilho nos meus olhos, não sabia que podia simplesmente ir à USP. Mas logo meus olhos encontram a opacidade do peso de saber que algo fora do meu controle me tiraria essa chance. Explico minha situação familiar para o jornalista, em quem a essa altura já me inspiro a nível pessoal. Ele me dá conselhos, me conta de políticas públicas que deveriam me auxiliar, procura no seu celular qual a UPA mais perto da minha casa. Infelizmente nada disso me isenta de ir pra casa e tomar conta da minha tia no período da noite.
Saindo dali, tenho certeza de que essa reportagem seria sobre ele. Na verdade, ainda em sua casa, já tínhamos essa certeza. Quando Sérgio nos deixa sozinhos pela primeira vez, olhamos uns para os outros e verbalizamos: “É, ele rende”, nos referindo a ter ou não 20 mil caracteres a serem escritos sobre ele. Fomos ingênuos e nojentos por sequer duvidar do potencial literário de Sérgio. Hoje vejo que 20 mil caracteres nem começariam a contar sua história.
Henrique
Desde o Uber, estava muito ansioso para a gravação. Era a minha primeira com uma figura totalmente desconhecida. Considero que sabia muito sobre sua vida; a internet e os livros estavam à minha disposição para um conhecimento prévio de Sérgio e tudo o que ele representa, mas não sentia que realmente o conhecia. Por ter sido o único estudante homem daquela sala, me senti fragilizado. Sérgio sabia disso e, não sei se numa tentativa de me deixar mais solto, ou tirar com a cara de um “tonto”, hora ou outra ele zombava da minha pessoa, tanto pela função que eu fazia ali (captar o áudio), quanto pelas minhas poucas interações.
Não me sentia confortável em performar, pelo Sérgio e por tudo que aquele local representava para mim e pela atitude de minhas colegas de puxar um pouco da responsabilidade de entrevistá-lo. “Tira essa porra de fone e fala com a gente” (seguido de uma expressão de indignação). “Esse filho da puta não fala nada?” (Desta vez, mais conformado e quase rindo). “Você não é um bundão, não, né? Se for, o jornalismo tá fudido!” (Sério). Todas essas atitudes me faziam imaginar o texto que depois essa entrevista toda renderia. Se fosse possível passar as sensações que Sérgio, sua casa e seu cigarro me passaram, a tarefa estaria realizada.
Além disso, critérios objetivos: assim como eu, Sérgio parece ser um amante da sétima arte. Impossível não prender a vista na enorme coleção da filmografia de Woody Allen. Eu sabia que ali não continha a filmografia completa; Woody Allen produziu 47 filmes durante sua carreira (e continua lançando). Entretanto, contei 14 DVD ‘s de diferentes filmes do cineasta americano. Sua coleção contava com outros longas, a maioria da década de 2000, mas nada chamava mais atenção do que a coleção mencionada. O cinema é uma grande paixão de Sérgio Gomes.
Sérgio não me pareceu ser uma pessoa que sente muita fome. Durante toda aquela tarde, apenas fumou e em certo momento bebeu um chá de uva verde. Quando vi a jarra de chá, imaginei ser um chá natural e caseiro. Primeiro que era muito específico o sabor do chá; segundo que a sua apresentação era muito exótica: uma jarra de vidro contendo o líquido (um pouco pegajoso) e muito gelo e rodelas de limão. Não sou de consumir coisas envolvendo frutas, mas me senti obrigado a aceitar um copo daquele chá. Sérgio me deu um copo sem que eu falasse nada, e passou na minha frente esperando que eu oferecesse o meu copo para ele despejar o líquido. Fiz e não me arrependi: o chá era delicioso. Era doce, um gosto que eu nunca havia sentido (nunca comi uva verde ou uva normal). Fiquei feliz, parecia ser uma opção de bebida saudável para minha dieta. Mais tarde, quando ele nos convidou para conhecer a casa e, eventualmente, a cozinha, vi em cima de um armário vários pacotinhos de chá de uva verde em pó. Não expressei nenhuma reação, apesar de ter essa liberdade já que ninguém estava prestando atenção em mim naquele momento, mas, na minha mente, me sentia enganado por mim mesmo e achei a situação toda uma graça. Me marcou.
Com o tempo, nossa relação melhorou. Em certo momento, inclusive, senti uma relação de pai e filho. Ele me dava tapas nas costas e falava coisas encorajadoras como “Vocês fazem parte do futuro do jornalismo do Brasil”, “Ler, estudar, tudo isso fará você ir longe”. Não me senti pressionado, mas senti que o Sérgio realmente contava com uma forte e impactante presença minha no jornalismo brasileiro. Durante aquela tarde, Sérgio foi se soltando e pontuando alguns de seus lados mais pessoais e acho que isso afetou essas interações que disse. Cada vez mais, a conversa era mais emotiva, mais sensitiva. Ele chegou a pedir dicas sobre como tirar fotos com filtro no celular. Mostrou-nos uma foto que ele tirou com um amigo em que um macaco gerado por inteligência artificial apareceu. Sérgio dizia não saber da onde surgiu aquele macaco, que certamente veio de um filtro que ele mesmo ativou na hora da foto. Ele sabia que essa situação seria engraçada, e ele conseguiu. Todos riram.
Após todas essas nossas interações, faltava a última. Ele iria se despedir para ir à USP para um evento de jornalistas, e tentou me convencer a ir, com frases como “você sabe o que está perdendo, né?”. Ele devia ter certeza que eu não iria, mas mesmo assim tentou me convencer. Como eu apenas neguei, pois estava cansado e com saudade de casa, ele foi embora e me deixou na garagem. Fiquei um pouco preocupado com o vazio e a escuridão das ruas de sua casa, mas como era um bairro nobre, tentei manter calma e pedi um Uber de volta para casa. Sérgio me deixou sozinho nessa.
Laura
No ano de 2024, eu estava fazendo muitos trabalhos sobre o período ditatorial que o Brasil enfrentou. Além de estar participando de uma oficina que produzia uma revista sobre as “Diretas Já”– movimento pela redemocratização do Brasil–, meu grupo de trabalho decidiu fazer um podcast sobre Vladimir Herzog.
Vlado era jornalista da TV Cultura na época da ditadura militar. Foi torturado e assassinato pelo sistema. Logo, durante uma pesquisa prévia de fontes a serem contatadas, busquei por jornalistas que, assim como Herzog, foram torturados no DOI-Codi de São Paulo. A lista é longa e recheada de relatos cruéis.
Como pesquisadora do podcast, li diversos documentos. Pesquisas acadêmicas, doutorados. Acessei vídeos e depoimentos veiculados pelo Youtube e pesquisei o que acreditava ser tudo que precisava saber sobre o assunto. Até que percebo um elemento comum em muitas de minhas pesquisas: Sérgio Gomes, ou melhor, Serjão.
Serjão estava preso no DOI-Codi no dia em que Vlado foi assassinado. Então, tinha encontrado o que acreditava ser minha fonte principal para o podcast. Com seus 75 anos, Sérgio tinha a aparência de um clássico velho comunista: cabelos grisalhos pelo tempo e um bigodão amarelado pelo uso de cigarro. Sabia uma parcela de sua história, mas as rasas pesquisas já me indicavam que ele teria muito a dizer; eu só não podia ter ideia do quanto.
Estava ansiosa pela entrevista e me senti vitoriosa quando recebi uma notificação de Serjão respondendo “S I M !!!!!!” para o convite.
Ao chegar à casa de Sérgio, vi que ela era bem diferente de qualquer coisa que pudesse imaginar. Colorida, feliz, cheia de plantas e com um portão azul que até uma criança de 5 anos poderia facilmente atravessar.
Caminhamos por seu piso de madeira e sentamos em seu sofá levemente avermelhado. Ele se posicionava em uma cadeira, bem na nossa frente e próximo ao piano de sua sala. Assim que nos acomodamos, percebi que tinha algo de diferente com aquela fonte jornalística. Sérgio não deixou que jovens de 20 e poucos o dominassem com perguntas que ele com certeza já estava cansado de ouvir. Parecia que ele podia prever exatamente tudo o que faríamos. Ele nos olhava como se buscasse algo de novo. Perguntava em detalhes como seria o trabalho, nos mandou enumerar os documentos que tínhamos estudado e listou sem consulta alguma todos os nomes de estabelecimentos que levavam nome de Vladimir Herzog– no total eram 12. Fez quatro perguntas seguidas e não conseguimos responder absolutamente nenhuma delas.
Só isso já foi suficientemente amedrontador. Filha de um jornalista vaidoso, me peguei com medo de estar cometendo o maior dos erros: supor que sei de algo que não faço a mínima. As pesquisas que eu fiz se tornam irrelevantes. Eu estava diante de um senhor que passou os últimos 50 anos de sua vida lutando pela democracia; eu e minha vaidade de ter lido e escutado algumas produções não sabíamos nada. Desse momento em diante lidei com Sérgio Gomes como uma lição– algo que acredito ter separado minha jornada profissional em antes e depois.
Nesse momento, também percebi que Sérgio Gomes não podia ser apenas uma fonte para um trabalho que falava de situações terceiras. Olhava para a sua casa, seu bigode queimado pelo cigarro e os livros que estavam espalhados por todos os lugares. Ele nos fazia refletir sobre questões das quais pouco tinham a ver com o tema, mas muito ligavam-se com a atualidade. Ele falou sobre a dengue, sobre o coronavírus, sobre a matemática, sobre dar aula em colégios de extrema elite. Um diálogo com ele mexeu comigo em um lugar particular.
Sérgio Gomes em dois momentos em sua casa: fumando o característico cigarro e fazendo anotações. Fotos: Laura Margutti
“Às vezes dava palestras nessas escolas caríssimas da elite paulistana e sempre costumava fazer uma pergunta: ‘Quais são as cinco pessoas que você ligaria em uma situação de emergência?’ Parece uma pergunta simples, mas com o tempo percebi que cinco era um número muito grande. Os alunos não tinham cinco pessoas. Então, diminui para três, perguntava: ‘Quais são as três pessoas que você ligaria em uma situação de emergência?’ Mas ainda assim, três também parecia um número muito grande para eles. Perguntava finalmente ‘Qual é a pessoa então, caramba?’ E eles respondiam: ‘Minha babá'”.
Nesse dia, cheguei em casa e escrevi no meu caderno todas as pessoas para quem eu ligaria em uma situação de emergência. Quando acabei, me deparei com 14 pessoas e chorei de alívio.
Além disso, também percebi que Serjão não era a fonte; ele era a reportagem inteira.
O carro
No dia 18 de março de 2024 eu andava de carro com Sérgio Gomes. Era por volta das 18h, em São Paulo. Passávamos pelo Brooklin, bairro elitizado da capital. Gomes conheceu muito bem a ditadura: sequestrado e torturado durante o período ditatorial. O jornalista, de 75 anos, dirige um Ford Ka antigo, nos levando a uma palestra na cidade universitária que seria ministrada por Ricardo Kotscho e sua neta. Conversávamos sobre a tortura que Sérgio sofrera em 1975.
“É delirante, você vira refém de seu próprio corpo”, ele me conta.
Conforme andávamos, o trânsito de São Paulo se mostrava cada vez mais caótico. Durante o caminho, um carro fecha Sérgio, uma moto quase atropela a lateral do carro e dezenas de buzinas invadem o ambiente com ruídos. Indignado com o trânsito, Sérgio para o carro por um momento e gesticula para outro veículo que o fechava: “Não é assim, um entra, depois o outro, um entra, depois o outro”.
Ele compara o que acontecia no trânsito de São Paulo com o cenário político do Brasil. O exemplo, apesar de simples, é esclarecedor. “O que acontece se os semáforos de São Paulo pararem de funcionar?” Rapidamente respondo que a metrópole viraria um caos, afinal, já era um caos sem mesmo os semáforos estarem com algum defeito.
Ele continua me explicando. Sérgio me conta que em menos de três horas, São Paulo pararia completamente. Haveria brigas e gritos. De acordo com ele, os mesmos que causam a confusão e que dirigem como querem exigiram ordem. Em meio ao caos, sem a coletividade e todos tomados pelo sentimento individualista de seus desconfortos, seria impossível solucionar sem uma ordem única e, provavelmente, nem tentariam. Desse modo, a opressão seria a solução utilizada para o problema. Afinal, uma vez que uma liderança única acaba com o caos por meio da opressão, é difícil tirá-la de lá.
“É assim que se faz uma ditadura”, Sérgio finaliza.
Lorena
No carro, eu e Manu, ainda iludidas de que conseguiríamos uma entrevista com o Sérgio Gomes, conversávamos sobre a morte do Vlado com um gravador ligado. Era para aparecer só a voz de nós duas, mas posteriormente esse plano iria por água abaixo.
Chegamos à casa às 14h35. Um tesouro cheio de plantas no meio do Brooklin. Sérgio nos cumprimenta com um aperto de mão em cada, fumando um cigarro, cuja fumaça escolhia sempre a minha cara para vir.
Conversa vai, conversa vem, esculachos. Assistiram tal coisa? Deveriam ter assistido. Tapa. Leram tal livro? Deveriam ter lido. Tapa. “Quantos esculachos a gente ainda consegue levar?”, a Manu me perguntou. Os esculachos continuavam, em meio a muitos pernilongos, um calor infernal e chá de uva verde — de que ele tem um estoque—com gelo. Conhecemos a esposa do Sérgio, a Ana Luisa Zaniboni, que é uma querida com a gente. Ela deseja boa sorte com a entrevista e sai de casa.
Sérgio encucou com o nosso amigo, o Henrique. Como ele ficou bem quietinho durante a visita, ele ganhou apelidos carinhosos como “filho da puta” e “bunda mole”, principalmente por não ter feito perguntas e ter ficado com a responsa de cuidar do áudio– ou seja, estava o tempo todo de fones de ouvido estilo headset.
Nós somos convidados a conhecer o resto da casa do Serjão. O seu quintal é lindo, e a garagem é um minicinema. No quintal, ele nos mostra um artesanato, que estava na sua carteira, que ele conta ter mandado para os seus pais enquanto estava preso. Tinha desenhado no pequeno pedaço do que parecia ser couro um símbolo, que descobrimos ser da praça Memorial Vladimir Herzog.
Símbolo da praça Memorial Vladimir Herzog na carteira e na camiseta de Sérgio Gomes. Fotos: Lorena Valeri
Não foi uma entrevista. Foi uma entrevista-não entrevista. Foi um papo. Foi uma aula. Foi um tapa na nossa carinha de humildes tapados. E, mesmo assim, Sérgio conseguiu deixar em nós a imagem de um querido. A impressão que tive é a de que ele é uma pessoa doce, leal e presente– por mais que se esconda por trás de uma personalidade um tanto rabugenta.
Assim que Gomes nos convida à aula magna de jornalismo da ECA-USP, eu e a Laura topamos de prontidão. Ele claramente julga a Manu e o Henrique, que não puderam ir– cada um pelos seus respectivos motivos.
Quando me dei conta, estava junto com a Laura no Ford Ka velho e cinza do Sérgio, passando pelas ruas de Pinheiros em direção à cidade universitária. Ele acende cigarros até mesmo no carro e se irrita com o trânsito: diz que os ricos dirigem como se não houvesse regras. Sérgio, em partes, se desmonta longe do microfone. Se ele antes parecia um personagem formal e formado, agora Gomes só não é um cidadão comum porque é inevitavelmente uma parte viva da história. O principal elemento em comum entre o Sérgio-persona e o Sérgio-cidadão é o cigarro, onipresente. Ele para definitivamente de nos esculachar e eu me questiono se os esculachos são um tanto performáticos.
Chegando lá à ECA-USP, ele nos apresenta a algumas pessoas—entre elas, a viúva do Audálio Dantas, a Vanira, e a filha dela, Mariana. O Sérgio deu uma charge da Laerte de presente para o Ricardo Kotscho. Assistimos a aula magna, de Kotscho, sua filha e sua neta– três gerações de jornalistas e muito sábios, devo dizer. Cada um passou as suas experiências para a frente.
Notei que tinha pouquíssimas pessoas de fora da ECA, e estas eram todas velhas. Confesso que fiquei levemente envergonhada sendo uma estudante de faculdade particular no meio da universidade pública.
Logo depois do aulão, o Sérgio encheu o nosso saco para que tirássemos uma foto com o Kotscho. Nós não conseguimos, só o alcançamos quando ele já tinha entrado no carro. Mas conseguimos conversar mais com a Vanira, e também com um cara da USP que estava organizando aquele evento. Todos foram muito receptivos com a gente, e o rapaz da ECA frisou que a universidade é pública– ou seja, podíamos visitar quando quiséssemos.
Cada momento desse dia foi uma aula, e a volta para casa não seria diferente. Voltamos eu, Laura, Vanira e Mariana no carrinho do Sérgio, com ele mesmo dirigindo—e dirige muito bem para a sua idade. Vanira solta frases icônicas e nos convida para o aniversário da sua filha, que seria no sábado seguinte. Nós fomos, com o intuito secreto de tentar uma aproximação maior com o Serjão– no que falhamos miseravelmente. Ele não foi, porque a Ana Luisa passou mal.
Capítulo 2: Quem é Sérgio Gomes
Sérgio Gomes nasceu em 1949 na cidade de São Paulo. Cursava jornalismo na USP enquanto a ditadura acontecia e era parte do movimento estudantil. Também filiado ao PCB, o famoso Partidão, Sérgio foi o primeiro jornalista a ser pego e o último a ser solto na “caça às bruxas” – sequestro em massa promovido pelos policiais militares que pretendia torturar e eliminar jornalistas filiados ao Partido Comunista Brasileiro.
Durante um mês foi torturado no DOI-Codi de São Paulo, localizado na rua Tutoia, no Paraíso. Com a repercussão do caso Herzog, o DOI-Codi foi esvaziado e Serjão foi levado para a sede paulista do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde foi oficialmente declarado preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Lá, permaneceu por mais três semanas.
Durante a leitura de As Duas Guerras de Vlado Herzog o grupo fica pensativo sobre o estrago que Sérgio já tinha feito aos seus 25 anos de idade. Serjão aprendeu muito cedo que a coletividade importava e não fazia-se revolução sem o povo.
Quando sequestrado, foi levado para o DOI-Codi do Rio de Janeiro e nos conta do diálogo que teve:
“Passa nome, endereço e parente próximo”
“Para quê?”
“Pra gente devolver o corpo?”
Ao contar sobre a tortura, ele sempre pensa no lugar humano, no coletivo e como o suplício tira o restante de humanidade que alguém ainda pode ter em um período ditatorial
“Eles usavam o recurso de botar o rádio bem alto para ver se impedia que os gritos das pessoas chegassem até a vizinhança. Não tinha nenhum tipo de preocupação, pelo contrário, podia ouvir.”
E continua para a reflexão:
“Pode imaginar? Acabamos de passar por uma situação de tortura e nesse meio tempo tem lá uma pessoa passando por aquilo que você acabou de passar. Você sabe o que está acontecendo com ela. Naturalmente esses gritos produzem na gente, medo de chamarem a gente pra lá. Isso produz uma coisa ao contrário do que seria esperado. [Quando] alguém está sendo supliciado, você geralmente tem dó da pessoa. Mas a situação vai se inverter de tal maneira, que enquanto tiver alguém gritando, significa que não sou eu que estou lá. Então olha que coisa maluca. Quanto mais o grito for do outro, menos o suplício será o meu. No fim de tudo o grito acaba gerando alívio.”
Sérgio conta detalhadamente as estratégias de cada torturador em específico. Salientando a diferença de cada um deles e estratégias. No depoimento que ele fornece, aponta sobre Pedro Mira Grancieri – torturador famoso no DOI-Codi que, em entrevista à revista IstoÉ, publicada em 1992, reconheceu ter envolvimento com a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.
“Esse cara, o Grancieri, ele tinha essa marca pessoal. A equipe dele, além do que os outros faziam de porrada, choque, afogar as pessoas; esse cara enchia a boca de sal e não dava água para beber, deixava sem comer. Ele andava com um sarrafo e batia nas articulações, tornozelos, pulsos e joelhos. Com algumas poucas porradas nas articulações, quebrava a pessoa toda – ele sabia onde bater.
Ele tinha uma predileção que era amarrar os dois braços da pessoa e as duas pernas na cadeira. Colocava um fio elétrico na orelha, um outro fio no pinto e dava choque enquanto a pessoa era torturada com um capuz. Ele ainda tinha essa técnica que era só dele, que era na altura da testa empapar o capuz com a moxicilina [droga que causa náuseas e tontura]; e aí você é obrigado a inalar aquilo de qualquer jeito. Era uma máquina que ele chamava de pimentinha.”
Capítulo 3: A praça
Laura
Estava chateada, porém, muito feliz. No dia 7 de abril acabaria esse processo de apuração intenso que fora conhecer Sérgio Gomes. Ele nos convidou a ir na praça Vladimir Herzog, onde rolaria um evento em homenagem ao dia do jornalista. Não sabia como seria, nem sequer sabia como era a praça, mas estava ansiosa.
Arte exposta em comemoração ao dia do jornalista. Foto: Laura Margutti
Assim que eu e Lorena chegamos, nos deparamos com Sérgio. Ele falava com todas as pessoas e parecia ser o coração do lugar, aquele com quem todo mundo conversava e que sabia tudo o que acontecia. Quando nos viu, ficou empolgado. Acho que foi o primeiro dia em que Sérgio demonstrou quase que apenas carinho por nós. Ele já tinha comentado antes que a nova geração o deixava preocupado.
“Quando vou nos eventos do sindicato, quando tem os eventos da praça, eu vejo que os jovens não tão chegando, a velharada como eu fica preocupada.”
Lá no início, quando Serjão cobrava de nós presença nos sindicatos, leitura, escrita e atividade jornalística, achava que ele era uma fonte que poderia estar preocupada com o que produziremos sobre Herzog. Percebi que fui muito egoísta ao pensar que Sérgio estivesse preocupado apenas com o legado de seu velho amigo e não com o coletivo. Posteriormente, encontrei com Sérgio mais quatro vezes e notei uma vulnerabilidade nele: ainda tinha medo do retorno da ditadura. Ele, com seus 75 anos, não podia fazer nada. É por isso que nos olha com profundidade e consegue identificar facilmente a ingenuidade de nossos jovens corações.
Quando vi Sérgio pegando o microfone e conduzindo o evento, sabia que esse papel não podia ser feito por nenhuma outra pessoa. Honestamente, foi uma cena emocionante. Todos sentados na escadaria da praça diante de Sérgio para ouvir a programação e posteriormente, música. Serjão já tinha nos dito que Ivan Vilela era o melhor músico de toda a atualidade. Não sei se o considero o melhor mas, de fato, o cara é bom. Ele tocou músicas em homenagem aos caipiras, nordestinos e árabes com acordes de fato fenomenais. Às vezes, Sérgio parava o que estava fazendo para elogiá-lo: interrompia a performance para dizer que Ivan Vilela era sensacional.
Sérgio Gomes agradecendo participante pela presença no evento. Foto: Laura Margutti
Enquanto o evento acontecia, mais pessoas iam para frente e falavam um pouco no microfone. Após ler As duas guerras de Vlado Herzog, ver Diléa Frate na minha frente era como ver um personagem. O relato dela sobre a tortura foi uma das partes que mais me emcoionou em toda a obra, vou deixar aqui um trecho:
“No DOI-Codi de São Paulo, levei choques nas mãos, nos pés e nas orelhas, alguns tapas e socos, sendo inquirida sobre colegas de universidade e suas supostas ligações com o PCB. Durante o tempo em que isso aconteceu, eu usava um capuz preto que sufocava. Num determinado momento, eles extrapolaram e, rindo, puseram fogo nos meus cabelos, que passavam da cintura. Imediatamente tirei o capuz, apaguei o fogo com ele e encarei meu algoz, um senhor com rosto de pai de família e uns 60 anos de idade. Os torturadores auxiliares perguntaram: ‘E agora, acabamos de vez com ela?’. Tornei a olhar para o mais velho nos olhos e falei: ‘Isso que vocês estão fazendo comigo é um absurdo, sou católica e vou batizar minha filha no domingo’. E perguntei: ‘Você acredita em Deus? Você tem filhos?’. Os mais jovens avançaram sobre mim, e o mais velho disse: ‘Deixa’. Logo depois, fui jogada numa cela com outras mulheres. Lembro-me de uma camponesa que estava com o rosto desfigurado pela pancadaria. Ela não conhecia ninguém ali, nem sequer sabia o que era comunismo. Foi parar lá porque tinha se relacionado amorosamente com um militante”.
Com o microfone em mãos, ela também conta sobre a tortura que sofrera, além de claro, mencionar sua amizade com Sérgio. Penso na resiliência de pessoas que mesmo torturadas e com seus 70 poucos anos ainda lutam diariamente por tudo que acreditam; pela coletividade.
Sérgio sorri para o telefone ao falar sobre sua felicidade durante o evento. Foto: Laura Margutti
Serjão volta ao microfone e informa: “Agora no almoço vamos ter cuscuz paulista, bolo de coco e de maracujá; além de claro, caipirinhas. Quem pode pagar paga; quem não pode pagar pega.”
Ele olha para os moradores de rua que dormem na praça Vladimir Herzog e acrescenta: “Podem beber mais caipirinha do que comer, nós não somos crentes”
Estava na fila da comida quando escuto de canto do ouvido duas mulheres conversando e comentando que o fato de moradores de rua estarem esperando pra comer na mesma fila que nós, mostrava que o Brasil, ou fragmento dele, ainda tinha esperança.
Após comer, conversar novamente com Sérgio, sua esposa e os participantes da praça, acreditava que o evento estivesse no fim. Entretanto, ainda existia trabalho a fazer. Os organizadores prepararam uma manifestação pró-Palestina. O ato consistia em protestar contra a morte de tantos jornalistas durante a guerra. Quem quisesse participar ficaria deitado na escada e com marcas falsas de sangue pelo corpo. No que eu resolvo participar, Sérgio deita bem ao meu lado. Mesmo de olhos fechados e encenando para a manifestação, sinto a energia que pairava sobre a praça. Todos estavam em silêncio, assistindo enquanto o drone passava e ficávamos deitados ao som de ópera.
Quando o manifesto acabou, já era hora de ir. Levanto e logo vou atrás de Sérgio para despedir-me e agradecer por tudo que foi ensinado. Quando meus olhos o encontram, ele ainda está sentado sobre as escadas. Com dificuldade de levantar em decorrência de ter tido cinco costelas fraturadas e recusando todos que tentavam o ajudar, Sérgio fica ali, sentado no meio da escadaria da liberdade e admirando o evento.
No vídeo a seguir, publicado pelo Canal da Praça, no YouTube, é possível acompanhar trechos do evento.
Lorena
Era dia 7 de abril quando eu e a Laura partimos para a praça Vladimir Herzog, na missão semissecreta de nos aproximarmos mais do Serjão. Ele nos convidou, quando fomos em sua casa, para um evento ligado ao Dia do Jornalista, que aconteceria na Praça.
Chegando lá, percebemos que o evento contava com música ao vivo e comida. O musicista era o Ivan Vilela, e a comida era cuscuz paulista e bolo gelado– no esquema de quem pode, paga– e deliciosas caipirinhas para complementar. Encontramos, também, a Vanira e a Mariana, que citamos anteriormente nesse texto.
Eu e Laura passeamos um tanto pela praça. Encontramos uma escultura de Vladimir Herzog escadaria acima e ficamos observando-a por um tempinho. Logo, descemos e sentamos nas escadas para assistir ao show do Ivan Vilela, amigo de Serjão.
O Sérgio falou bastante no microfone naquele dia– ele costuma falar bastante, mesmo. Chamou todos para participarem de uma intervenção artística performática relacionada aos povos da Palestina. Foi uma performance e tanto, que eu não quis participar porque, honestamente, fiquei com preguiça. Mas fiquei observando: pessoas pintadas de vermelho, imitando sangue, fingiam estar desacordadas nas escadarias da Praça, enquanto uma sirene muito alta e ópera tocavam e os amigos de Sérgio fotografavam.
No fim das contas, foi uma tarde divertida. Foi bom encontrar aquelas pessoas todas que representam uma antiga e importante geração de jornalistas e artistas. Pessoas que me representaram no passado, me representam no presente e, se Deus quiser, continuarão a me representar ainda por um tempo. Só achei meio triste que um evento tão legal daqueles praticamente só contasse com aquela geração, e não com a minha. É realmente uma pena.
Reflexão final
Conhecer Sérgio Gomes foi uma experiência como nenhuma outra; seria individual e única se não tivesse sido coletiva (entre nós estudantes e idealizadores desta reportagem). Tivemos a chance de conviver com uma parte viva da história brasileira. Sérgio, que tinha todos os motivos para ser fechado para a vida, nos recebeu de braços abertos. Mais do que isso, ensinou lições valiosas para nós, brasileiros que buscam seguir seus passos e exercer a profissão de jornalista da forma mais fidedigna. Além de jornalistas, nos tornamos historiadores e, nesta reportagem, Sérgio Gomes é a história. Sérgio Gomes é o jornalismo. Sérgio Gomes é a história do jornalismo brasileiro e um exemplo para as novas gerações.