Bianca Kachani
Julia Gianesi
Letícia Vilar
Renata Carlini
»»» Imagine-se com cerca de 20 anos de idade, com todas as inseguranças típicas da fase. Cortava o cabelo com frequência? Estava satisfeito com sua altura? E com seu peso? Era feliz com seu corpo, em geral? Modificava seu estilo periodicamente?
Agora presuma que você decidiu mudar. Mudar totalmente. Investiu US$ 60 mil em cirurgias plásticas. Ou quase US$ 25 mil em implantes no queixo e na bochecha. Bizarro? Por que alguém faria isso? A resposta é simples: para parecer uma celebridade.
Histórias como essas são reais e cada vez mais comuns, indo do singelo recorte de revista que se leva ao cabeleireiro, em busca de um corte fashion adotado por algum famoso, até as mesas de cirurgia. Os casos do parágrafo acima aconteceram com a londrina Claire Leeson, de 24 anos, e com os gêmeos Mike e Matt Schlepp, ambos com 20 anos de idade. A moça desembolsou US$ 60 mil para se parecer com a socialite norte-americana Kim Kardashian. Os irmãos investiram para imitar o visual do ator hollywoodiano Brad Pitt.
Esse tipo de comportamento faz parte de um fenômeno difuso, porém visível, presente em cada “like” ou “share” que perseguimos em nossas redes sociais, em cada foto que postamos na expectativa de projetar uma imagem favorável, de nos tornarmos mais populares. A cultura da celebridade – que é também uma cultura de superficialidade. Para muitos, uma cultura fútil e apocalíptica, que resultará em um progressivo emburrecimento da sociedade.
Por baixo dessa preocupação, contudo, jaz uma outra, menos óbvia. A noção de que existe uma cultura “alta”, que eleva o espírito, e uma “baixa”, popular e popularesca, em que se enquadra o culto às celebridades.
O antropólogo Eduardo Benzatti, professor da ESPM-SP, lembra que o tema da banalização da cultura tem sido assunto recorrente no Brasil, e reforça que a distinção entre alta e baixa cultura é mais complexa do que parece, e pode ser mais uma questão de referências do que de qualidade. “Talvez para uma geração mais jovem as referências sejam outras”, afirma.
Isso não impede, contudo, o reconhecimento de que há, sim, muita porcaria sendo veiculada por aí. “A qualidade [da cultura de massa] em determinados aspectos caiu”, reconhece. “Parece que é bacana fazer música com palavrão, denegrindo a mulher, de duplo sentido, chula. Tem quem goste, mas não é só isso que deve ser mostrado”, exemplifica o professor. Mais do que censurar essa cultura, crucial seria, portanto, disponibilizar alternativas. Quem gosta de funk, ouve funk, quem gosta de ópera, ouve ópera, evitando moralizar a discussão.
O antropólogo acrescenta que seria interessante se houvesse mais diálogo entre o que é consumido pelas periferias e na elite. “É uma questão de indústria. O rap, por exemplo, é de periferia e bomba em qualquer lugar. Mas poderia ter mais troca, a gente podia trocar mais, enriquecer mais, trocar conteúdo”, argumenta. Para ele, isso vale para todas as áreas da indústria cultural: música, cinema, programas de televisão etc.
A antropóloga Laura Graziela Gomes concorda, afirmando que “a questão da banalização e da manipulação da cultura se torna evidente quando se constata que esta é, na maioria das vezes, a única opção que algumas populações possuem de acesso à cultura ou a formas de lazer”. Para ela, a “tragédia” da televisão brasileira reside justamente no fato de que os empresários universalizam apenas o que o próprio mercado define como entretenimento para as massas.
Nada disso é tão novo, historicamente. O psicanalista Pedro De Santi explica que cada geração tende a ver a próxima como se o mundo estivesse se degradando ou fosse muito mais superficial. “Porque eu não entendo a outra geração, acho que é maluca. Mas a gente não deve moralizar. Cada forma de funcionamento tem certos recursos e não tem outros”, diz.
As gerações passadas não usufruíam das tecnologias que existem hoje. Há prós e contras nessa situação. Ao mesmo tempo em que essas pessoas conseguiam se aprofundar mais em diversos temas, a geração atual está sempre conectada e possui maior mobilidade. “Esses recursos do ambiente contemporâneo podem ser muito produtivos e ricos em algumas áreas e não em outras”, completa o psicanalista, que acredita que uma das áreas beneficiadas é a da comunicação.
Protagonismo
“Tudo o que é novo chega para somar. Temos preconceito com o que é novo porque não é habitual”, completa o estudante de relações internacionais Fernando Porto.
Para o universitário, o novo modelo de fama associado à internet tem pontos positivos, porque “os jovens ganham mais espaço”. No entanto, ele considera a situação problemática quando o culto às celebridades vira uma espécie de doutrina inquestionável. “É ruim quando as pessoas seguem algo como verdade única”, pondera.
Susan Lisenberg, que pesquisou em seu mestrado o fenômeno da “celebrificação”, conta que as pessoas se tornam famosas hoje “por captar mais a atenção do que as demais num dado contexto”. Simples assim. Doutoranda em Comunicação e Práticas de Consumo na ESPM, ela faz relação direta entre a circulação midiática e a conquista de um lugar de destaque no espaço público.
Embora o ambiente do mundo contemporâneo seja propício para que blogueiros e youtubers conquistem a fama, não há garantia de sucesso. Ela compara a possibilidade de explodir nas mídias sociais com uma estrada de duas vias, na qual a situação pode se reverter e o indivíduo voltar ao anonimato com a mesma velocidade com que ascendeu.
Mesmo os jovens às vezes estranham essa velocidade toda. Renan Leite, 22 anos, aluno de Produção Musical, lamenta que muitos famosos não agreguem nada à sociedade. E, ainda por cima, “tiram o foco de outras pessoas que podiam estar em evidência”, critica.
O psicanalista Pedro De Santi até entende que a sociedade poderia preferir que o posto de “celebridade” fosse restrito a pessoas como o Papa Francisco ou o presidente dos EUA, Barack Obama, figuras atreladas a valores relevantes para a sociedade. No entanto, não há muito a fazer, pois as pessoas estão sempre em busca de modelos com os quais se identifiquem. E, nesse sentido, talvez o papa não seja suficientemente pop.
O VALOR DA FAMA
Partindo dessa ideia, De Santi compreende o motivo pelo qual as pessoas buscam suas referências nos célebres. “Em um mundo com uma cultura da mídia, o valor social que a gente mais tem hoje é o ser famoso”, diz. Ele explica também que todos nós precisamos de referências. “Buscamos referências culturais. A gente sempre vai atrás desses modelos de identificação.”
Além disso, De Santi esclarece que “Em uma sociedade em que os valores estão muito ligados à visibilidade e à representatividade, o valor é dado por sua celebridade. Se a pessoa é famosa, ela é boa”, argumenta.
Susan concorda com o psicanalista. Ela explica que as celebridades nos conectam, nos ligam uns aos outros e se tornam assunto em comum entre nós. “Elas nos congregam e refletem os nossos valores sociais. Por que alguém se torna conhecido em determinada época? Isso diz muito a respeito de nós como sociedade, o que valorizamos, a que damos atenção, o que estamos discutindo”, argumenta.
“O que devemos nos perguntar hoje é qual o peso que vida privada das celebridades deve ter diante de um mundo que enfrenta desafios como a urgência da sustentabilidade, as migrações em massa e as desigualdades sociais”, complementa a historiadora e jornalista Angela Ravazzolo.
Atualmente, as redes sociais são a principal porta de entrada para o mundo das celebridades, afinal, alimentam e facilitam o interesse pela vida alheia. O pesquisador João Matta, especializado em estudos etnográficos com jovens, acredita que essas mídias são o palco perfeito para que cada um possa se tornar uma “minicelebridade” dentro de seu próprio mundo. “A partir do momento em que você está olhando a vida do outro, o banal vira notório. O que era da vida cotidiana vira interessantíssimo”, pondera.
Flávia Pavanelli e Vitória Moraes – esta última mais conhecida como Viih Tube – são exemplos de pessoas que ganharam a fama na internet. Tratando de assuntos cotidianos do mundo jovem e fazendo pegadinhas com o namorado, Viih Tube, de apenas 15 anos, hoje tem mais de 2 milhões de inscritos em seu canal no Youtube.
Já Flavia Pavanelli aos 18 anos conquistou milhares de fãs nas redes sociais. “Eu acho que ela ficou famosa primeiro pela beleza e porque ela tem o tipo de vida que a maioria das meninas gostaria de ter”, comenta Michelle Rodrigues, 22 anos, seguidora de Flávia em redes sociais.
Beatriz Goldenstein, 16 anos, acompanha a vida de ambas. “A Flávia posta dicas de maquiagem e eu gosto”, conta. “Descobri a Viih Tube pelo Youtube”, completa. A estudante diz que acredita que elas chamam atenção pela beleza e pelos assuntos abordados.
QUEM NÃO É VISTO NÃO É LEMBRADO
Para Pedro De Santi, as postagens nas mídias sociais viraram hoje uma condição de existência. “Se eu não postei, não fui ao show”, brinca. Ele acrescenta que, por causa disso, hoje transformamos visibilidade em valor. “Se uma pessoa é famosa, ela é boa. Os valores da nossa sociedade estão muito ligados à visibilidade e à representatividade”, diz.
“O consumo da vida do outro é cada vez mais interessante. As redes sociais permitem o tempo inteiro esse consumo”, completa o pesquisador e publicitário João Matta. Ele acrescenta que “é mais fácil olhar para o outro do que para dentro da gente”. “Antes as obras eram mais interessantes que o autor, ao longo da história o autor fica mais importante que a obra. O autor vira a obra”, reflete.
Flávia Pavanelli, que hoje tem 2,4 milhões de seguidores no Instagram, reconhece que ganhou a fama através da internet. “Eu sempre trabalhei como modelo quando era mais nova, mas as coisas só deram certo porque a internet começou a vir muito forte e me ajudou no sentido de visibilidade. Se não fosse a internet tudo teria sido mais difícil.”
Críticos não faltam. Mayara Lopes, estudante de administração, considera o culto às subcelebridades da internet um tipo de cultura inútil. “Eu acho que elas ficam famosas por qualquer coisa e o conteúdo que elas oferecem não é relevante”, critica. Lucas Gonçalves, de 25 anos, também é ácido: “Não curto muito, e não acho muito merecedor ficar famoso por um blog ou qualquer coisa do tipo, acho que há artistas com muito mais potencial e que acabam não ficando famosos”.
A antropológa Laura Graziela analisa a mudança de gosto entre as camadas populares. “Os mais pobres, mesmo sendo menos escolarizados, já apresentam um interesse notável pela rede, não apenas pelas formas de relacionamento que ela proporciona, mas também pelo conteúdo armazenado que circula nela e pode ser acessado gratuitamente. O Youtube demonstra que a distinção e distância entre alta e baixa cultura podem ser bastante amenizados”, diz.
Com o tempo, valores se transformam. Há diferenças entra ser celebridade hoje e antigamente, Susan Lisenberg explica esse fenômeno. “Antes era preciso atravessar o filtro seletivo dos veículos de comunicação, de lógica top-down [de cima para baixo], como TV, revistas, jornais, para aparecer nestes meios e ter a imagem projetada para um grande público. Hoje você pode ter essa projeção ao alcance de um clique.”