O legado do modernismo brasileiro

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Fernanda Delgado e Isabelle Gregorini

O movimento modernista fundou e desenvolveu a ideia do moderno no Brasil. Desde a Semana da Arte Moderna de 1922, 100 anos atrás, a forma como o país se vê, nos âmbitos cultural e artístico, foi fundada pelo modernismo, que fez com que a história brasileira fosse revisitada, e suas heranças coloniais, de uma sociedade patriarcal, escravocrata e racista, fosse relembrada.
A grande diferença do Brasil de 100 anos atrás e do Brasil de hoje está justamente na questão social do próprio país de cada período e no movimento artístico que acabou por deixar um legado incontestável do que se tem hoje. Os modernistas de 1922 embarcaram em um processo de redescobrimento do Brasil, visando colocar de lado as visões oitocentistas. Eram intelectuais brancos que usavam da sua influência para romper com a visão do passado. Hoje, mesmo que o lugar de fala na sociedade brasileira ainda seja essencialmente do homem branco, há uma ascensão das classes marginalizadas, que expõem suas próprias questões.
Mesmo após a Semana, a democratização do acesso à arte, em especial a modernista, era escassa. No início, apenas a elite tinha alcance às obras, vendo que as compravam e deixavam em seus acervos pessoais. Logo, o acesso era limitado a esse grupo social. Com o tempo, foi ocorrendo uma certa democratização do acesso às artes modernistas, possibilitando que hoje muitos tenham a chance de ver e entender sobre o tema na internet e em museus, por exemplo.
O modernismo é um movimento artístico que ainda possui muita influência nos dias de hoje. Foi a partir dele que se criou o direito eterno da liberdade da pesquisa estética e se desenvolveu a temática que discute a consciência nacional e a brasilidade. Macunaíma, de Mário de Andrade, é um exemplo de uma obra que exalta a cultura e cria um retrato do brasileiro. O álbum de Caetano Veloso, Meu Coco, lançado em 2021, é uma obra atual que também trata sobre a identidade brasileira, característica e grande herança do movimento moderno, que valoriza as raízes nacionais, explorando correntes como o regionalismo.
Outro grande legado do modernismo nos dias atuais é a liberdade na escrita, principalmente no quesito da liberdade de expressão, em que os intelectuais passaram a utilizar uma linguagem coloquial (simples), criar versos livres e valorizar os acontecimentos e fatos do cotidiano.
A liberdade é direito de todo cidadão, mas nem sempre foi assim. Antes de grandes rupturas de paradigmas acontecerem, artistas das mais diversas áreas sofriam censuras, tanto de forma direta quanto indireta. Conforme o tempo foi passando, vários movimentos, em especial a Semana de Arte Moderna, colaboraram para que ocorresse tal quebra de conceitos pré-estabelecidos em uma sociedade extremamente exclusivista e preconceituosa, fazendo com que, atualmente, os artistas possam se expressar da forma que quiserem.
Iara Rennó, cantora, produtora e compositora brasileira falou um pouco sobre como é esse sentimento de liberdade para ela no meio musical: “’Hoje não há limites para a música. A música, inclusive, é infinita, continuam fazendo músicas novas, milhares de músicas sendo lançadas todos os dias. Então a música já mostrou essa característica que é ilimitada. Eu me sinto livre na minha música, livre para trafegar. Em diferentes expressões, eu gosto de trafegar pra uma coisa mais experimental, por uma coisa mais livre. Posso andar pelo improviso, eu posso brincar com a minha voz, com meu instrumento, posso também fazer uma canção supersimples e uma canção inspirada em cantigas tradicionais. Eu acho que a liberdade é isso, é a gente sentir que não é obrigado a fazer isso ou aquilo.”
Questões sociais também passaram a ser exploradas durante este período, ganhando cada vez mais valor ao longo do tempo. A desigualdade, a escravidão e a vida dos retirantes são apenas algumas das temáticas que passaram a ser discutidas na época, estimulando e desenvolvendo a consciência crítica, intelectual e social do público. A literatura foi a principal área a tratar de tais questões. Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos publicada em 1938, é um símbolo de tal transformação causada pelo modernismo, no qual é retratada a batalha de uma família que sofre com a seca do Nordeste, fazendo parte da corrente do regionalismo.
Para Lucas Tolotti, mestre em Teoria e Crítica de Arte e professor de História da Arte, é inegável a influência que o modernismo exerce nas artes, principalmente na questão de romper barreiras pré-existentes na arte contemporânea. O professor enxerga, cada vez mais, a presença de artistas engajados e vozes plurais que reivindicam um espaço que lhes é devido. “O que vejo como uma herança do Modernismo é, em resumo, justamente esta questão do romper das barreiras. Mas agora não é apenas uma barreira estética. Estamos falando de visibilidade, representatividade. E daí surgem questões estéticas, éticas, políticas, artísticas e poéticas fortíssimas. É importante perceber atualmente quem está rompendo estas barreiras, e como isso é necessário nas artes”, explica.
O modernismo desencadeou a reflexão crítica do Brasil, importante legado do movimento para os dias de hoje, vendo que vivemos em uma sociedade muito engajada em políticas e projetos sociais. É perceptível que a Semana de Arte Moderna de 1922 não influenciou somente na visão, expressão, criação e divulgação das obras e dos artistas envolvidos, mas também em um viés social, de aceitação e representatividade. Percebe-se que o processo de desconstrução dos paradigmas não ocorreu rapidamente, foi um processo longo e árduo. Tal processo, que teve como grande influência a Semana, culminou para que hoje artistas como Iara possam se expressar e serem livres dentro da música, da arte ou da literatura.
Tolotti percebe que, hoje, a Semana é tida como uma importante ferramenta para o desdobramento das produções e dos pensamentos do período, encontrando novas poéticas e leituras: “Algo que apareceu muito nas comemorações do centenário da Semana foi uma crítica ao seu caráter elitista. Hoje, vejo que artistas pensam não só sobre a Semana e não são apenas influenciados por ela, mas pensam e produzem a partir de seus questionamentos sobre a Semana de 22. Um exemplo que faz bem essa ponte é o documentário AmarElo, de Emicida. Existe ali um diálogo muito importante sobre a ocupação dos espaços. Quem pode ocupar o espaço do Theatro Municipal, por exemplo? Quem o ocupou na Semana de 22 – e o ocupa até hoje? Aí nós voltamos para a história e percebemos de fato um caráter elitista de todo este movimento.”