No 20°Congresso da Abraji, jornalistas contaram bastidores das reportagens sobre a fraude do INSS (Foto: Luciana Vassoler/Abraji)
Nicole Micheletti (4° semestre)
Em um cenário em que parte da corrupção se esconde dentro da própria legalidade, o jornalismo investigativo tem sido uma ferramenta de denúncia: um detector de padrões sistêmicos e um defensor da democracia. É o que explicitaram duas mesas do 20º Congresso de Jornalismo Investigativo da Abraji, que aconteceu entre 10 e 13 de julho na ESPM-SP, com jornalistas que discutiram os temas: “Caso INSS: como o jornalismo pode pautar a agenda nacional” e “Emendas parlamentares: como cobrir o desvio de dinheiro público depois das decisões do STF”. Nos debates, profissionais que lideraram coberturas nacionais mostraram, na prática, como o jornalismo é capaz de expor esquemas invisíveis ao olhar do poder, mas não ao olhar da imprensa.
Quando o jornalismo vai antes do Estado: o caso do INSS
Tudo começou com as queixas de uma idosa da zona sul de São Paulo. A aposentada reclamava desde setembro de 2023 de descontos misteriosos em sua aposentadoria. O valor era abatido mensalmente em nome de uma associação da qual ela jamais ouvira falar. A denúncia chegou ao conhecimento da redação do Metrópoles, e o repórter investigativo Luiz Vassallo foi acionado para apurar o caso.
O que parecia uma fraude isolada revelou-se um esquema nacional: mais de dois mil processos se acumulavam contra a mesma entidade, e os relatos de aposentados lesados se multiplicavam. Em dezembro, a primeira matéria foi ao ar com o título “Associação em nome de auxiliar de dentista dá golpe em aposentados”, abrindo caminho para uma das coberturas jornalísticas mais impactantes dos últimos anos.
A série “Farra do INSS” revelou que falsas associações descontaram irregularmente mais de R$ 2 bilhões de idosos entre janeiro de 2023 e abril de 2024, provocando demissões no alto escalão do governo e investigações da Polícia Federal. Foi a partir da história de dona Josefa, investigada por um jornalista, que o “Escândalo do INSS” surgiu.
Na mesa “O Caso INSS: como o jornalismo investigativo pode pautar a agenda nacional”, Vassallo contou que sua investigação durou mais de um ano, culminou em mais de 30 reportagens, e uniu apuração com base na Lei de Acesso à Informação e cruzamento de dados que apontaram fraudes e leniência de autoridades. “A dona Josefa me contou que o desconto fazia falta no remédio, na comida. E, mesmo assim, ninguém do governo parou para ouvir histórias como a dela”, relatou Luiz Vassallo, do Metrópoles, autor da primeira reportagem.
“O INSS só se mexeu depois da pressão pública gerada pela série de reportagens. Antes disso, era como gritar em uma sala vazia”, afirmou Breno Pires, repórter da revista piauí, que mediou a mesa. A repórter Geralda Doca, do O Globo, também participou do debate.
Posteriormente, o novo ministro da Previdência Social, Woney Queiroz, foi entrevistado pelos jornalistas em outra mesa e afirmou: “O Estado falhou. As portas do INSS foram arrombadas entre 2019 e 2022. Quando assumimos, o estrago já estava feito.”
Transparência sob ataque: o orçamento nas mãos dos apadrinhados
A falta de transparência é um problema atacado também em outras investigações jornalísticas. Na mesa sobre emendas parlamentares, os jornalistas Natália Portinari (UOL), Tatiana Mazzetti (Folha) e Dimitris Dantas (O Globo) revelaram outra dimensão da corrupção: aquela que não é escondida, mas aceita.
As chamadas emendas parlamentares, criadas para descentralizar o orçamento, passaram a movimentar mais de R$50 bilhões por ano, muitas vezes, sem qualquer critério técnico ou controle público. “O deputado conhece bem a própria base, mas e as cidades que não têm padrinho político? Elas ficam de fora. Viram desertos de investimento.”, alertou Natália.
Esse “padrinho político” é, na prática, um parlamentar com influência suficiente para direcionar verbas públicas para determinado município, geralmente por interesse eleitoral ou alianças locais. As cidades que não contam com esse tipo de representante influente no Congresso ou nas assembleias estaduais acabam sendo deixadas de lado, sem acesso a recursos fundamentais para a saúde, educação, infraestrutura e desenvolvimento. Isso cria uma geografia desigual de investimento público, em que o dinheiro vai para onde há conveniência política, e não necessariamente onde há mais necessidade.
Os jornalistas da bancada relataram que mesmo após decisões do STF que exigiam a identificação de quem indicava as verbas, o Congresso criou mecanismos para ocultar os padrinhos.“Dez líderes partidários começaram a assinar milhares de emendas. O que não falta no Congresso é criatividade para esconder quem manda no dinheiro público”, ironizou Dimitris.
O jornalismo, mais uma vez, foi quem deu visibilidade ao problema. Em alguns estados, como mostrou a mesa, as versões estaduais dessas emendas já operam sem qualquer rastreabilidade ou transparência efetiva. “É recurso público sem carimbo, sem projeto técnico, sem controle. O prefeito recebe e aplica como quiser ou como convém ao deputado”, resumiu Dimitris.
Um dos exemplos é o estado de Minas Gerais, que mesmo em situação fiscal crítica, sob regime de recuperação e com dívidas suspensas judicialmente, reservou quase R$ 2,2 bilhões para emendas estaduais em 2025, praticamente o mesmo valor que pagou à União em serviço da dívida. Segundo os jornalistas, isso mostra como os interesses políticos locais acabam se sobrepondo ao planejamento econômico, e o uso do dinheiro público passa a seguir a lógica de influência, e não de necessidade.
Combater a corrupção começa com ouvir, cruzar e expor
“Não dá pra fazer jornalismo de dados sem ouvir gente. Mas também não dá pra cobrir corrupção sistêmica sem dados”, afirmouNatália Portinari, ao explicar como sua cobertura mistura entrevistas e planilhas para revelar padrões ocultos.
Ambas as mesas reforçaram que o jornalismo não serve apenas para denunciar o que está errado, mas também para evitar que o errado se torne regra. “O orçamento virou um instrumento de poder pessoal. Quanto mais silencioso o esquema, mais eficaz ele se torna”,apontou Tatiana Mazzetti.