Gabriel Wainer
Juliana Marques
Marina Bianchi
Otavio Cintra
»»» Depois, tiro um cochilo, almoço filé mignon e saio para o salão com o Chico, meu motorista. Quando chego em casa, lancho, janto e vejo novela no colo da mamãe. Então, hora de dormir.
São seis horas da manhã. Acordo. Não vejo meu pai. Saio da barraca. Ele está na praça. “Vamos dar uma volta, Chiquinha?”, chama. Damos a volta no quarteirão. Passamos pelos nossos amigos da banca de jornal e aí papai pega algumas migalhas para mim na padaria. Voltamos à nossa casa na praça. Vejo um estranho se aproximar. Avanço. “Volta aqui, Chiquinha!”, escuto.
Sissi, da raça maltês, e Chiquinha, vira-lata, são cadelas com vidas distintas, mas com um componente em comum: são amadas por seus donos, a arquiteta e socialite Brunete Fraccaroli, e o morador de rua Paulo (que não informou o sobrenome), que vive nas ruas dos Jardins há 30 anos.
Mas nem sempre esse amor se manifesta de modo saudável. Cães considerados membros de família, donos que compartilham comida com seu pet ou já evitaram sair para cuidar do animal: esses são sinais típicos de relações em que há humanização do cachorro.
Para a veterinária Janaína Reis, há uma linha tênue entre se preocupar e amar seu animal e humanizá-lo. “É normal a pessoa se preocupar, querer dar o melhor para o animal com relação a atendimento, cuidados, amor, alimentação, higiene, tudo isso. Mas a pessoa não pode cobrar do animal comportamentos humanos, condutas humanas”, afirma.
Mudanças sociais influenciam nesse comportamento. Com a tendência de famílias (e casas) menores e a diminuição na taxa de natalidade, cães e gatos suprem a carência afetiva de muitas pessoas. “O cachorro é uma companhia, é um ‘filho’, então muita gente acaba optando por ter pets e só depois pensar em ter filhos de fato. Até porque é muito mais fácil ter um cachorro ou um gato do que ter uma criança, em todos os aspectos, inclusive financeiro”, diz a veterinária.
Filhos de quatro patas
Desde criança, Brunete queria ter um animal de estimação. Sua mãe, porém, nunca deixou. Foi aos 36 anos, com a chegada de Sissi, uma maltesa branquinha, que a arquiteta realizou seu sonho. “Ela é mais que uma companheira, é uma filha”, declara Brunete. “Fui mais consciente quando tive a Sissi do que quando tive minha filha, com 18 anos.”
Quando a socialite procurava um cachorro para comprar, ela queria que o animal tivesse pelo menos duas características: fosse meigo e taurino. “Eu sou de touro, a minha filha é de touro, a casa toda é de touro. Então a gente queria um cachorro fiel, porque taurino é fiel.”
E a fidelidade de Sissi se confirmou. Ela e Brunete se tornaram inseparáveis. Dormem juntas, vão para o escritório da arquiteta juntas e até dividem colírios e remédios. “Ela está tomando rivotril agora. Metade do que eu tomo”, detalha.
A outra pessoa que Sissi adotou como mãe foi a babá da casa, Tata, que já está na família há 30 anos. Tata e Brunete conhecem os costumes da maltesa melhor do que ninguém. Sabem que ela só come e toma água se for em recipientes de vidro e não gosta de repetir suas refeições. E também que fica totalmente sossegada quando está escutando a emissora de rádio Nativa FM com volume alto.
Sissi seguiu os passos de sua mãe. Como Brunete, ela é famosa nas redes sociais. Sua conta no Instagram tem aproximadamente 2.500 seguidores e no Twitter são quase 14 mil. A fama de ambas proporciona convites para festas, desfiles e outros eventos. Já fizeram até sessões de fotos para ONGs que incentivam a adoção de cachorro. “Ela não pode ver um fotógrafo. Quando vê, já vai para frente e não sai nunca mais. Ela se sente gente”, conta a arquiteta.
Algo que Brunete não tolera é o abandono de animais. “Acho que as pessoas têm que se conscientizar que os bichinhos são gente. A responsabilidade de criar uma criança é muito grande”, afirma.
Na rua
A apenas um quilômetro do escritório de Brunete vive Paulo, um morador de rua. Após o dono do ferro velho fechar o lugar onde o mendigo trabalhava e dormia, Paulo resolveu rápido o problema. “Eu vou ficar por aqui [Jardins] que é melhor”, decidiu. Há 30 anos no bairro, ele é bem recebido nos estabelecimentos da região e sempre teve seus companheiros de quatro patas. Ao longo dos anos, já contou com oito cachorros.
Atualmente ele tem três: Chico, que foi abandonado por roer o sofá; Joaquim, o mais novo e que foi pego diretamente de um pet shop; e Chiquinha. “Essa é meu grude. Se eu vou ali no bar da Pamplona tomar uma cachacinha, ela vai comigo”, comenta, rindo.
Paulo tenta alimentar seus cachorros com ração doada, mas nem sempre consegue. É nesse momento que o espírito de pai fala mais alto. “Eu pego a marmitinha que os restaurantes me dão, como um pouquinho e entrego o resto para os cachorros”, explica.
Cansado da vida na região dos Jardins, Paulo pretende se mudar, buscar uma nova aventura. Quer ir até o Paraná andando. “E os cachorros?”, perguntamos. Sorridente, ele responde. “Ué, vão comigo. São minha companhia.”
Troca de sentimentos
Quando a dependência entre os donos e os pets se torna demais, isso prejudica ambos os lados. Se, por alguma razão, o dono se afastar do animal, ele sofrerá com a ausência do tutor.
Para as pessoas esse relacionamento causa outros danos. Segundo o psicólogo Fernando Falabella, a transferência excessiva de afeto dos humanos para cachorros é um equívoco. “Há quem consiga se dar muito bem com cachorros, mas que não consegue se dar bem com pessoas”, exemplifica. Se essa devoção for exagerada, pode ter reflexos na vida afetiva e social da pessoa. Se ela não tem sucesso em relações interpessoais, busca afeto no animal.
A paixão pelos seus cães já trouxe coisas ruins para Brunete. Além de “morrer de saudade” da cadela quando está longe, Sissi precisa estar sempre com alguém para não se sentir abandonada, segundo a dona.
Racionalmente, as pessoas entendem que é um exagero, mas elas não conseguem mudar isso. É como qualquer outro vício. Porém, não é por má fé que os donos agem dessa maneira. Eles apenas querem dar o melhor para seus companheiros em retribuição ao amor incondicional do seu “filho” canino.
Mercado em ascensão
Na onda dos cuidados cada vez mais sofisticados com pets, o mercado cresce. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), o Brasil tem o segundo maior mercado pet do mundo. Em 2014, movimentou, sozinho, R$16,7 bilhões no país.
Acessórios como adesivos, brinquedos, roupas, coleiras personalizadas; pet shops de luxo, que oferecem serviço de ofurô, massagens e acupuntura; sorvete, bolo e goma de mascar são exemplos de alimentos que antes eram apenas consumidos por pessoas, mas que já têm versão pet.
Há três anos foi criada a primeira empresa de São Paulo especializada em alimentação natural para cachorros, a La Pet Cuisine. Juliana Bechara, veterinária de formação, tinha a vontade de abrir um negócio próprio tendo os cães como público-alvo. Junto com sua irmã, a chef Veri Noda – que já trabalhou no restaurante espanhol El Celler de Can Roca, na Espanha, eleito o melhor do mundo mais de uma vez pela revista britânica Restaurant – decidiram abrir o negócio.
Na produção caseira, os alimentos são selecionados pela chef e os pratos são montados com o auxílio de uma equipe de nutricionistas. “Nós usamos ingredientes frescos e que são utilizados na culinária humana”, conta. A não adição de compostos químicos – conservantes, corantes e aromatizantes, por exemplo – é o principal benefício desse tipo de alimentação natural. O perfil predominante dos clientes da La Pet Cuisine “são as pessoas que consideram os cães membros da família”, conta Juliana.