Brasileiros valorizam a fidelidade, ainda que traiam, diz antropóloga

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Otavio Cintra
Uly Campos

»»»A antropóloga Mirian Goldenberg nasceu na cidade de Santos, em São Paulo. Atualmente é professora do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, no Rio de Janeiro. Mirian pesquisa e escreve sobre temas como fidelidade, sexualidade e envelhecimento. Colunista da Folha de S. Paulo há mais de cinco anos ela já escreveu vinte livros e diversos artigos sobre essas temáticas.
Nesta entrevista ela fala sobre a relação dos brasileiros com o envelhecimento, das diferenças entre a traição masculina e feminina e da ideia do corpo ser um capital na nossa cultura.


A sra. estuda temas como ciúmes, sexualidade, traição, novas famílias, infidelidade, todos temas delicados. Por que eles interessam?
Em quase todos os meus textos, analiso homens e mulheres que experimentaram situações de transgressão e de desvio. Pesquisei e continuo pesquisando indivíduos que são estigmatizados por serem considerados diferentes, que sofrem por serem invisíveis, que vivem relações amorosas e sexuais que fogem do modelo tradicional, que estão fora do padrão de corpo valorizado na cultura brasileira.
Desde “A Outra” até a pesquisa atual sobre “A Bela Velhice”, as diferenças entre homens e mulheres e os comportamentos considerados desviantes estiveram no centro das minhas reflexões. Analisei a trajetória de Leila Diniz, um mito de mulher transgressora, estudei amantes de homens casados, pesquisei as militantes políticas, discuti a construção social do corpo e os padrões culturais de beleza e de juventude e, atualmente, estou pesquisando as experiências e representações sobre a velhice.
Os motivos para a infidelidade diferem entre homens e mulheres. Sua pesquisa mostra que as mulheres traem por falta de amor e por vingança, enquanto os homens afirmam que trair é da natureza masculina. Qual a razão dessa diferença?
Ao analisar os discursos de amantes de homens casados e de homens e de mulheres que foram infiéis, constatei que a fidelidade é o principal valor e que, mesmo sendo infiéis, eles desejam que o parceiro seja (ou pareça ser) fiel.
Em “A Outra” já havia apontado que a fidelidade era o principal valor das amantes pesquisadas. Todas acreditavam que seus amantes eram fiéis. Todas disseram que eram fiéis aos amantes. A infidelidade foi descrita como uma patologia ou insuficiência da relação amorosa. Elas afirmaram que a fidelidade do amante era um valor tão fundamental que sem ela a relação não existiria. Elas disseram que são as “únicas”, especialmente no domínio sexual. Para elas, a verdadeira Outra seria a esposa traída. Elas, as amantes, seriam a número um, a relação por escolha, por amor, não por obrigações. Foi possível perceber que a categoria de acusação a Outra é relativa, depende de quem acusa e de quem é acusada.
Na pesquisa quantitativa a fidelidade também foi apontada como o principal valor do casamento, sendo considerada muito mais importante do que o amor, filhos, dinheiro e vida sexual satisfatória.
Muitos afirmaram que, mesmo sabendo que é provável que o parceiro tenha sido infiel, preferiam acreditar que ele sempre foi e sempre será fiel. Alguns disseram que “preferiam fazer vista grossa”, que não queriam descobrir a infidelidade de seus parceiros.
Chamei de “fidelidade paradoxal” ou de “paradoxo da fidelidade” esse tipo de comportamento: uma espécie de “cegueira voluntária”, consciente e deliberada. Constatei que os pesquisados valorizam ainda mais a fidelidade do parceiro quando eles mesmos são efetivamente infiéis. Pode-se pensar que é justamente porque os indivíduos são ou desejam ser infiéis que a fidelidade é um valor tão importante.
Outro dado interessante é a justificativa sobre a própria infidelidade. Os homens pesquisados se justificam por terem uma natureza propensa à traição. Eles dizem trair por instinto, essência, atração física, vontade, tesão, oportunidade, galinhagem, hobby, testicocefalia.
Nas justificativas femininas encontrei: insatisfação com o parceiro, faltas do casamento, vingança, além de um número significativo de mulheres que disse ter traído por não se sentir reconhecida, valorizada, elogiada e desejada pelo marido.
A sra. afirma que, apesar de tudo o que já conquistaram, as mulheres ainda se sentem vítimas nas suas relações amorosas. Por que isso ocorre?
Apesar de muitos comportamentos não estarem tão distantes, inclusive no que diz respeito à infidelidade – 47% das mulheres e 60% dos homens pesquisados afirmaram já terem sido infiéis – os discursos femininos e masculinos a respeito da questão são muito diferentes.
Os homens justificam suas infidelidades por meio de uma suposta natureza masculina. Já as mulheres infiéis afirmam que seus parceiros, com suas inúmeras faltas e traições, são os verdadeiros responsáveis por suas relações extraconjugais.
A culpa da infidelidade parece ser sempre do homem: seja por sua natureza incontrolável, seja por seus inúmeros defeitos. Se é inquestionável que nas últimas décadas houve uma grande mudança nas relações conjugais, pode-se verificar que na questão da infidelidade parece existir um certo privilégio masculino: o homem é o único que se percebe e é percebido como sujeito da traição. Enquanto a mulher, mesmo quando é infiel, continua se percebendo como uma vítima, que no máximo reage à dominação masculina.
O comportamento em relação ao sexo parece ter mudado, mas o discurso, não. Por quê?
Os comportamentos sexuais podem ter mudado, tendendo a uma maior igualdade, mas o discurso sobre o sexo parece resistir às mudanças. O discurso estabelece e reafirma diferenças entre homens e mulheres, até mesmo quando os comportamentos parecem recusar essas diferenças.
Não estou afirmando que não existem diferenças no comportamento sexual feminino e masculino. O que quero sugerir é que o discurso sobre o sexo não só reforça as diferenças existentes, como parece ampliar muito o significado de diferenças que não são tão grandes assim.
Como surgiu a sua ideia de que o corpo é um capital?
Em 2000, iniciei a reflexão sobre a construção social do corpo brasileiro. Surpresa com a recorrência da categoria “o corpo” em uma pesquisa que investigava as representações sobre ser homem e ser mulher, os modelos ideais de casamento e a importância da fidelidade, constatei que “o corpo” é uma verdadeira riqueza em determinados segmentos sociais.
Perguntei às mulheres: “O que mais te atrai em um homem?”. Obtive como resposta: inteligência e “o corpo”. Quando perguntei aos homens: “O que mais te atrai em uma mulher?”, encontrei: beleza e “o corpo”.
Perguntei às mulheres o que elas mais invejam em outras mulheres. Elas responderam: “o corpo” e beleza. Em seguida, detalharam: cabelos, seios, bunda, barriga, pele, dentes, pernas, cintura, olhos e boca.
Perguntei às mulheres o que elas mais invejam nos homens. A resposta mais citada foi liberdade, seguida de “fazer xixi em pé”. Elas também invejam o fato de não menstruar, não ter cólica, não ter TPM, não ter menopausa, não se depilar, não ter celulite, não ter estrias e não engordar tão facilmente.
Perguntei aos homens o que eles mais invejam em outros homens. Eles responderam: inteligência, poder, dinheiro, sucesso, “o corpo”, força física, altura, cabelo, abdômen sarado e pênis grande.
Quando perguntei aos homens o que eles mais invejam nas mulheres, quase todos responderam: “nada”.
Por que a sra. acha que os homens dizem não ter inveja das mulheres?
Pode-se pensar que por medo da acusação de não serem “homens de verdade”, o que pode ser notado nas respostas: “Não invejo nada, sou espada”; “Inveja de mulher? Não sou boiola”; “Como assim? Eu sou homem, não sou gay”.
Qual o corpo invejado pela mulher brasileira hoje, segundo a sua pesquisa?
Na pesquisa, as mulheres mais citadas como invejadas ou imitadas foram atrizes, especialmente aquelas que são protagonistas das novelas exibidas na TV Globo. Mas também foram apontadas como objeto de inveja e de imitação algumas modelos, cantoras e apresentadoras de televisão.
A ideia de “imitação prestigiosa”, de Marcel Mauss, foi fundamental para compreender a importância de determinado modelo de corpo na cultura brasileira, especialmente na cultura carioca.
A sra. acha que os cariocas se preocupam mais em conquistar o que a sra. chama de corpo-capital?
Minha pesquisa revelou que, entre muitos cariocas das camadas médias, o capital social incorporado pelo corpo é de enorme importância. Para eles, “o corpo” é uma fonte de distinção, de sucesso e até mesmo um meio de mobilidade social.
Pode-se pensar que, nesse universo, o corpo trabalhado, cuidado, sem marcas indesejáveis e sem excessos é o único que, mesmo sem roupa, parece estar decentemente vestido.
Nesse sentido, além de “o corpo” ser muito mais importante do que a roupa, ele pode ser considerado como a verdadeira roupa: é “o corpo” que é exibido, moldado, manipulado, trabalhado, costurado, pintado, enfeitado, escolhido, construído, produzido, invejado e imitado. É “o corpo” que entra e sai da moda. A roupa parece ser apenas um mero acessório para a valorização e a exposição desse corpo.
Sugeri que “o corpo” é um verdadeiro capital no universo pesquisado, um corpo distintivo que sintetiza três ideias: “o corpo” como uma insígnia do esforço que cada um faz para controlar o próprio corpo a fim de conquistar a boa forma; “o corpo” como um ícone da moda que simboliza a superioridade daqueles que o possuem; e “o corpo” como um prêmio merecidamente conquistado por aqueles que foram capazes de alcançar uma forma física mais “civilizada”, por meio de muito trabalho, dinheiro e sacrifício.
Como a sra. aponta em seus estudos, em uma cultura em que o corpo é considerado um capital, no mercado de casamento, no mercado sexual e no mercado profissional, como as mulheres representam e experimentam o processo de envelhecimento? Quais são os principais medos das mulheres brasileiras com relação à velhice?
Nos grupos de discussão e nas entrevistas que realizei com as brasileiras de 50 a 60 anos, o que mais me chamou a atenção foram três tipos de discursos: decadência do corpo, falta de homem e invisibilidade. Elas falaram pouquíssimo dos filhos, dos netos e menos ainda de suas atividades profissionais. Elas apontaram, predominantemente, as perdas, os medos e as dificuldades associadas ao envelhecimento.
Elas disseram: “Aqueles elogios, olhares e cantadas que eram tão comuns desapareceram. Não me chamam mais de gostosa. Os homens passam e não me enxergam, parece que eu sou transparente. Não é nem que eu me tornei uma velha, simplesmente deixei de existir como mulher. Sou uma mulher invisível”.
Existe uma diferença entre o modo como a mulher brasileira se vê e como mulheres de outros países se veem?
A discrepância entre a realidade objetiva e os discursos das brasileiras me fez perceber que aqui o envelhecimento provoca um sofrimento maior, o que pode explicar o sacrifício que muitas fazem para parecer mais jovens, por meio do corpo, da roupa e do comportamento.
Nesse discurso “vitimário”, dois foram os eixos principais das brasileiras: a decadência do corpo e a falta de homem. Foi possível constatar que, além de “o corpo” ser um capital, o homem ou, melhor ainda, o marido, também pode ser considerado um capital, talvez até mais importante do que “o corpo” em determinados segmentos sociais e faixas etárias.
Em uma sociedade que valoriza tanto o corpo, como é visto o envelhecimento?
O envelhecimento pode ser experimentado como um momento de perdas, principalmente de capital físico. No entanto, para as mulheres que passaram a valorizar outros capitais, o envelhecimento pode ser vivido como um momento de inúmeros ganhos, realizações, conquistas, descobertas, amadurecimento, cuidado, e especialmente de maior liberdade e de aceitação das mudanças nas diferentes fases da vida.