Crônica: foto apresenta expressão e reação diante do medo

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Foto: Osman Sağırlı.

Surgiu nas redes sociais a foto de uma menina síria chamada Hudea, rendendo-se ao confundir a lente da câmera do fotógrafo, Osman Sağırlı, com o cano de uma arma. Não posso negar que isso me afetou mais que o normal.

Sou ascendente de sírios cristãos, vindos para o Brasil, de Homs, cidade que fica a 190 km de Damasco, capital da Síria. Meus bisavós vieram no início do século XX e pude conviver com a minha bisavó até meados de 2010, quando ela faleceu. Ainda falava árabe fluentemente e nos ensinava uma ou outra palavra. Tenho em minha família, ainda, alguns resquícios da cultura árabe, principalmente na culinária.

Apesar da distância temporal, mobilizei-me com a foto, imaginei-me no lugar dela. Criança que teve de sair de Homs, cidade que era uma fortaleza para os rebeldes que lutavam contra Bashar al-Assad, mas foi tomada de volta, depois de dois anos de sítio pelo exército, fazendo com que os rebeldes e as famílias morressem de fome até se renderem, de acordo com informações da imprensa estrangeira. A cidade é importante para al-Assad por ficar no meio do caminho entre as duas cidades mais importantes da Síria: Damasco e Alepo, além de ficar entre o norte e a costa.

Alternar entre andar pelo deserto e pela destruição e pegar carona por aproximadamente 300 km. Ter de passar calor, frio, medo, fome até conseguir chegar à Turquia, onde moraríamos em campos de refugiados, considerados “visitantes”. Apesar de não termos passaportes, a facilidade de transporte para lá seria o diferencial em comparação com o Líbano.

Uma vez no campo, faria parte dos 1,7% refugiados que são de Homs. Apesar de sempre ter sido minoria (principalmente por ser mulher e cristã), no campo seria maioria: 54% da população nos campos são crianças, 77% são mulheres e menores de 18 e, assim como metade dos refugiados, minha casa estaria destruída.

Meu pai dificilmente estaria vivo, estaríamos sujos, provavelmente doentes, e seria parte de 25% das crianças que têm dificuldades de dormir após presenciar tanta morte e destruição. Nossa casa, como mais da metade dos refugiados, estaria parcialmente destruída. Já haveria me acostumado com a fome, levando em consideração a cidade sitiada que estávamos. Tínhamos conseguido sair porque os rebeldes se renderam ao cansaço e à fome e o exército evacuou a cidade.

Se estivesse na idade de Hudea, seria parte de 37% da população que teria menos de 12 anos. Como menina, o destino do meu casamento precoce seria incerto, dada a situação difícil de achar um marido nas condições que estávamos. Mesmo assim, seria uma das 30% de meninas solteiras (dados oficiais do governo turco), aproximadamente. 70% já estariam casadas e isso me daria certa apreensão. Minha família precisaria de mim e eu deles. Teríamos medo depois de tudo o que aconteceu, mesmo com muitos afirmando a segurança dos campos de refugiados.

Eu teria raiva do que acontecera com a minha família e com a Síria e dificilmente teria uma educação apropriada e apoio psicológico que pudesse conter tanto medo e raiva. Teria raiva de Bashar al-Assad por ter nos feito passar fome, frio, medo e luto. Não saberia do meu futuro, mas cresceria apoiada no ódio e no medo, e, ao brincar com as outras crianças, veria que não seria a única. A guerra estaria tão presente em mim que estaria terrivelmente perturbada psicologicamente.

Estaria brincando sozinha ao ver um homem segurando um instrumento preto com uma parte reta grande e teria muito medo. A guerra chegou novamente a mim, o medo tomando cada parte do meu corpo frágil. É isso, não tem mais jeito. Hora de ser gente grande e sobreviver como fiz por todo esse tempo. Levantaria os braços e seguraria o choro.

Renata Geraldo (1 semestre)