CAROLINA PETENA | MARINA ALMEIDA
»»»O maior entreposto de alimentos da América Latina não para. Por mês, o Ceagesp movimenta 240 mil toneladas de alimentos e comporta mais de 2.700 estandes em 46 pavilhões.
Aos finais de semana a rotina é acelerada. Os varejões de sábados e domingos têm clima de feira-livre. Os comerciantes expõem seus produtos em barracas coloridas. São oferecidos frutas, legumes, hortaliças, pescados, ovos, aves, cereais e outros produtos típicos de feira, como pastéis, salgados, bolos, lanches, entre outros.
O cenário durante a semana é bem diferente. Não há bancas, os produtos ficam em caixas de madeira – todas de verduras, vendidas por atacado – e não circulam compradores como donas de casa e curiosos em geral. Há trabalhadores andando de um lado para outro; alguns sentados, compenetrados enquanto fazem contas; outros, ainda, fazem uma visita ao vizinho para encomendar alguma verdura diferente daquelas que vendem. Os carregadores de caixas e mercadorias, cruzando o pavilhão, dão um permanente clima de fim de feira ao lugar.
Nas madrugadas o comércio continua. A comercialização do pescado acontece de terça a sábado, das 2h às 6h, e a feira de flores é de terça e sexta, das 5h30 às 10h30. Para conhecer melhor a atribulada rotina dos trabalhadores do Ceagesp, a reportagem da Plural fez quatro visitas ao entreposto, em dias e horários alternados.
Imigrantes
Inúmeros trabalhadores vieram de longe para ganhar a vida no Ceagesp. Às vezes, de outros países, como Daiwa Migita – senhor de poucas palavras, não fala o português com fluência. Ele trabalha há 34 anos no local. “Sou importado do Japão”, brinca, ao explicar o sotaque estrangeiro. Natural de Kumamoto, chegou em São Paulo com a família aos 18 anos para trabalhar como lavrador. “Vim para ampliar mercado. O Japão era um país pequeno, limitado.”
Migita trabalhava no interior paulista, em Monte Verde, onde hoje tem uma chácara, e começou a frequentar o Ceagesp assim que chegou ao Brasil. Depois que conseguiu plantar suas próprias verduras, decidiu comercializá-las na capital paulista.
Entre os brasileiros, predominam nordestinos – a imensa maioria, do Piauí. Exceção à regra do Estado, mas não da região, é o cearense Miguel França Ferreira, que chegou à capital também com 18 anos, em 1961. A viagem demorou 22 dias, com direito a ônibus capotado na região de Minas Gerais. “Só trazia a coragem e a cara, viajando num pau-de-arara. Eu penei, mas aqui cheguei”, canta ele a música de Luiz Gonzaga para ilustrar a vinda para São Paulo.
O principal motivo que fez com que Miguel se mudasse para a cidade foi a condição em que vivia no Nordeste. “Vim para subir na vida”. Analfabeto, diz ter muito orgulho de tudo o que conquistou. “Consegui abrir meu negócio em 1988 e hoje tenho três filhos formados. Minha família toda mora aqui comigo, ‘truxe’ tudinho pra cá”.
Por conta da simpatia, o feirante, que também adora contar histórias, já deu muitas entrevistas. “Eles [os feirantes] passam por mim e falam ‘ê Miguel, te vi na TV!’”, conta.
Lá e Cá
Além dos feirantes, os carregadores são figuras muito presentes no Ceagesp. Eles estão por todo lado, carregando caixas, produtos e qualquer coisa que precise de transporte. O trabalho é autônomo e cada viagem – dos boxes até os caminhões – custa R$ 20. Fazendo uma média de oito viagens por dia, esses senhores e jovens fortes afirmam que conseguem sobreviver. Para trabalhar no local é preciso ser cadastrado e pagar uma taxa que garante os direitos trabalhistas.
Cícero Romão de Oliveira, pernambucano, trabalha há 47 anos no entreposto. Ao completar 40 anos de serviço foi homenageado pela Assembleia Legislativa de São Paulo e pelo Ministério do Trabalho. Ele é um dos 43 diretores do sindicato da categoria que se reúnem todo mês para discutir a situação dos carregadores. Em tom de brincadeira, conta das mudanças que ocorreram no Ceagesp desde a sua chegada. “Naquela época, menos pessoas vinham comprar aqui, o pavilhão era metade do que é hoje e pra lá era só mato.” Ele diz ainda que todos são muito amigos e que há pessoas do Brasil inteiro ali, mas três quartos dos carregadores são do Piauí.
Confirmando as estatísticas de Cícero, o amigo e colega de trabalho piauiense Antônio Otávio da Silva está no Ceagesp há 43 anos. Ele conta que, dependendo da área do Ceagesp, o perfil dos trabalhadores muda. “Aqui na seção flores a gente trabalha com pessoas alegres, contentes, educadas e respeitosas”, diz.
Com muita disposição aos 69 anos, garante que o que o mantém vivo é o trabalho. Chegar no entreposto às 4h30 não é um problema. E, mesmo após pouco mais de três horas de trabalho, despede-se da reportagem da Plural para fazer a oitava viagem do dia.
Madrugada
Quinta-feira, 20h. Marlene Leite Bueno sai acompanhada da irmã e do sobrinho de Santo Antônio de Posse, a 150 km de São Paulo, rumo ao Ceagesp para montar seu box de produtos de decoração e jardinagem, o Avencca Flores. Duas horas depois, já no entreposto, começam a descarregar o caminhão e a preparar o espaço para as vendas. Os primeiros clientes chegam por volta da meia-noite, e a maioria deles só volta para buscar as compras de manhã, entre 6h e 8h30.
Há 36 anos a família de Marlene segue essa rotina todas as segundas e quintas-feiras. O negócio se iniciou quando as irmãs começaram a procurar e a pesquisar novidades nos matagais e nos terrenos da região em que moram. Só depois disso entraram no mercado das flores secas e enfeites. “E tudo é produção nossa”, afirma Marlene.
A produção cresceu tanto que hoje o Avencca já vende para o Brasil inteiro. Segundo ela, o box no Ceagesp funciona como um ponto de venda para os clientes que vêm de longe visitar as feiras em São Paulo.
As madrugadas no entreposto são mais difíceis do que parecem. “A gente passa sono e passa frio durante a madrugada. Muito sono e muito frio”, relata Marlene. “Cochilar só é possível quando a outra topa ficar acordada!”. Mas o sono já foi espantado diversas vezes pelas mais variadas aventuras. “Enchentes, eu já peguei três! A gente só via as melancias boiarem pelo pavilhão abaixo. Tivemos que recolher tudo correndo e levamos de volta para o caminhão. E teve vez que nem deu pra ir embora, ficamos presos no Ceagesp até a água baixar”.
“Teve um dia também que deu um vento muito forte que derrubou a barraca, caiu tudo no chão. Precisamos recolher tudo e só terminamos de arrumar às 4h. E aí, quando deu 5h, precisamos sair porque tudo estava quebrado e molhado. Fomos embora”, conta Marlene. “É sofrido, mas dá pra viver tranquilo. O que precisa ter é coragem e disposição. E eu gosto do que faço”, acrescenta.
A comerciante desmente as histórias de que o Ceagesp, principalmente durante a madrugada, é perigoso. Ela, em todos os seus anos de feirante, nunca viu nada violento acontecer. “Só sei que, uma vez, tinha um rapaz que me pediu um cigarro e eu não dei. Ele me seguiu durante um mês. Eu não podia ir ao banheiro sozinha! Tinha um menino que ficava aqui comigo e me acompanhava na hora que eu precisava ir ao banheiro. Foi a única vez, mas eu passei muito medo. Agora, se a pessoa me pedir, eu dou o maço inteiro!”, diz.
Marlene conta, orgulhosa, que suas flores fizeram parte da decoração do casamento do jogador Ronaldo Fenômeno. Mesmo às 9h, depois de uma madrugada inteira trabalhando, a dona do Avencca mantém o bom humor e relata inúmeras histórias envolvendo o trabalho no local.
Ela sai com o caminhão de volta para Santo Antônio de Posse ao meio-dia da sexta-feira. Almoça, passa na fábrica e só chega em casa às 16h. “E ainda há os afazeres domésticos”, brinca. A estadia no entreposto se torna ainda mais longa quando são realizadas feiras de flores e em época de Dia das Mães e de Natal, que são as épocas em que as encomendas são maiores.