Agricultura familiar: produção sustentável e primordial

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Antonio Molina e Lavinia Xavier

“A rotina é levantar bem cedo, tirar o leitinho, tratar de uma galinha, tratar de um porco, aguar a horta e sair para trabalhar o dia todinho. Chegar tarde e repetir quase a mesma rotina, tratar de um porco, deixar as coisas preparadas, aguar a horta”. É assim que o mineiro Jucemar Oliveira, de 60 anos, descreve seu dia a dia. Rotina semelhante a mais de 4,4 milhões de indivíduos e famílias do Brasil.

O ganha-pão de Jucemar é também o principal sustento das mesas brasileiras: a agricultura familiar. Segundo dados da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a produção alimentar advinda da agricultura familiar é responsável por 70% de toda alimentação nacional. O dado chega a ser de 80% em todo o planeta, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

Mas, afinal, como definir o conceito de agricultura familiar? A prática compreende um amplo significado que pode ser encarado sob diversas perspectivas, sejam elas econômicas, sociais, jurídicas e até humanas. Thiago Verano, agrônomo e especialista em agricultura familiar camponesa pela Universidade Federal de Goiás (UFG), aponta os requisitos necessários para que a prática de produção alimentar se enquadre no conceito de agricultura familiar.

“É uma categoria social prevista em lei. Para ser legal no Brasil, a pessoa tem que viver da produção que vem da terra, a produção tem que ser majoritariamente familiar. Tem a questão do tamanho da terra também, que varia de estado para estado, de município para município, com relação ao tamanho do módulo fiscal de cada local”, explica.

O módulo fiscal é a área mínima necessária para a reprodução econômica e social de uma família do campo. O tamanho dessa área varia de acordo com aspectos, como qualidade do solo, acesso a água, distância de mercado consumidor e infraestrutura da região (estrada, energia).

Apesar da importância vital da agricultura familiar para a economia e alimentação nacional, a prática ocupa apenas 23% da área de plantio do país, segundo o Censo Agro 2017 do IBGE. Os outros 77% são reservados para os grandes latifúndios, espaços com uma lógica de produção completamente oposta à agricultura familiar.

 

AGRICULTURA FAMILIAR x LATIFÚNDIOS

Bianca Reame é sócia da empresa Raízs, um mercado virtual que se propõe a comercializar apenas produtos orgânicos, produzidos por pequenos produtores. O setor de orgânicos, assim como grande parte das alternativas de consumo sustentável, tem crescido de maneira significativa nos últimos meses no Brasil. De acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresa (Sebrae), o mercado cresceu quase 10% desde o início de 2020.

A produção de orgânicos é fruto de uma preocupação da agricultura familiar, o que dificilmente está presente em produções de grande quantidade. “Por ela ser baseada na pequena escala, ela tende a usar menos adubos químicos e respeitar mais os recursos naturais. A base produtiva da agricultura familiar concentra-se na diversificação de culturas. E ao produzir de forma diversificada, por exemplo, as pragas e as doenças diminuem consideravelmente nas propriedades”, afirma Thiago.

Bianca exerce seu trabalho motivada pela certeza do valor da agricultura familiar para o desenvolvimento da sociedade brasileira. “É fundamental para a segurança alimentar do brasileiro, além de empregar milhares de pessoas no campo, ao contrário do agronegócio, e movimentar comunidades inteiras”, diz.

Um dos principais destaques da agricultura familiar é justamente a sua posição antagônica em relação aos latifúndios. A agricultura de formato tradicional não se preocupa em colocar em prática noçõesde sustentabilidade, além de ser uma produção de métodos puramente comerciais. “A lógica produtiva da cultura patronal é sempre o lucro, é sempre produzir mais, gastando menos insumos. Já a lógica produtiva da agricultura familiar é diferente, é uma lógica baseada na reprodução social da família, na reprodução econômica da família”, destaca Thiago.

A dinâmica da reprodução na agricultura familiar é a realidade de muitos brasileiros, incluindo o mineiro Edson Vander, de Conceição da Aparecida. O produtor de visual quase clichê, com bonés meio rasgados e camisetas sempre encardidas de terra, confirma que a prática sempre esteve presente em sua vida. “Eu nasci na agricultura, cresci na agricultura e trabalho na lavoura desde criança”, conta ele.

A realidade de Edson ainda evidencia outra característica da agricultura familiar: a dupla função da produção, tanto para consumo próprio, como para comercialização. “O que mais plantávamos em Minas era arroz e feijão para o gasto (consumo próprio) e para vender. Plantávamos para o comércio o café, que ia direto para Guaxupé, uma cooperativa”.

Atualmente, Edson possui 51 anos e é aposentado, mas não deixa de exercer a prática da agricultura, e mantém lavouras de café em Minas Gerais para a comercialização do produto.

A principal fonte de renda dos agricultores familiares parte da comercialização da sua produção, atividade potencializada por empresas que prezam por um desempenho sustentável da sociedade, como a Raizs, gerando visibilidade aos pequenos produtores. “A missão [da Raizs] é conectar o pequeno produtor ao consumidor nas grandes cidades”, afirma Bianca. A maior parte dos polos produtivos de abastecimento da empresa estão localizados no interior de São Paulo, Paraná e na Bahia.

Atualmente, a prática é incentivada por meio de políticas públicas, algumas delas em nível federal. Uma das principais é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), no qual toda escola pública é obrigada a comprar 30% da sua merenda escolar da agricultura familiar.

Contudo, segundo Thiago, o incentivo ainda é insuficiente e esbarra em uma dinâmica que busca favorecer apenas os grandes latifúndios. “Aquele pequeno produtor que faz uma rapadura, um queijo, que faz uma linguiça artesanal, muitas vezes não consegue legalizar sua produção para comercializar no mercado formal. Esse é um dos grandes entraves que tem hoje, a grande burocratização e a legislação, muitas vezes feita para atender a grande produção da agroindústria”, finaliza.