A gente não quer só comida

Grafites é arte nas ruas de São Paulo, principalmente no Beco do Batman, localizado no bairro Vila Madalena. Fotos realizadas para a Oficina de Fotojornalismo da ESPM-SP. (30/09/2019) - Foto: Ana Carolina Bilato

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A arte é a reflexão da vida e da sociedade em que está inserida, é política e necessária à evolução da humanidade

Catarina Bruggemann, Fernanda Shikay, Heloísa Freitas, Isabela Puccini, Vitória Sanches

 

O que você imagina quando pensa em arte? Nos museus, nas paredes da cidade, nas escolas, nas redes sociais, nas ruas e onde mais você recordar a arte está presente. Ela é considerada uma atividade humana que se relaciona a qualquer fazer estético. Seu processo de criação pode envolver emoções, sentimentos, estudos. Ou seja, a forma que aquele indivíduo optar por liberar seu senso artístico para a criação de novas obras irá afetar os sentidos de quem interagir com elas.

Ana Lupinacci, professora universitária, coordenadora do curso de Design da ESPM-SP e artista plástica, estuda o papel da arte dentro da sociedade e explica o valor dessa forma de expressão. Para ela, a arte atua como uma auxiliadora na construção histórica de determinado grupo ou nação. “Quantas vezes muito do que foi compreendido e revelado de uma sociedade de uma determinada época o foi pela arte? Quanto que você pode trazer de compreensão de um determinado tempo por um afresco, por um quadro, por uma escultura, por uma ruína, por uma instalação? Todos esses espaços, os museus, as fundações, esses espaços que guardam arte, são também espaços políticos”, explicou.

Além de ser uma manifestação cultural, a arte é a reflexão da vida humana e da sociedade em que está inserida. Fernando Chuí, pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), afirma que a arte reflete o mundo à sua volta, bem como projeta possibilidades e novos modelos, sempre atrelados à realidade vivida.

Chuí faz uma retomada histórica do conceito de que a arte acompanha a vida e, com ela, vai se modificando. “A arte acompanha os ideais de sua época, como é o exemplo dos gregos, que refletiam seus idealismos na busca pela beleza clássica. A igreja medieval instituiu uma arte que educava ao cristianismo e a arte se descola de sua representação realista quando a fotografia se populariza”, declarou o pesquisador.

Apesar de toda importância que as manifestações artísticas carregam como representação da sociedade, vemos que a cultura passa por tempos difíceis no Brasil. Desde janeiro deste ano, o Ministério da Cultura se tornou Secretaria Especial da Cultura, uma pasta dentro do Ministério da Cidadania. No início de novembro, porém, a pasta foi direcionada para o Ministério do Turismo. Ainda no âmbito federal, as leis de incentivo, fundamentais para a realização de diversos projetos, sofreram alterações que inviabilizam suas execuções. A Agência Nacional de Cinema (Ancine) foi alvo de duras críticas após a suspensão de um edital que continha obras com questões relacionadas à sexualidade e à comunidade LGBTQI+.

As reduções de verba também foram registradas no âmbito estadual. O corte de 23% da verba do orçamento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, em São Paulo, mostrou que a arte não é uma das principais preocupações do governo. Chuí acredita que esses cortes interferem muito nas produções, uma vez que eles mostram a maneira como o público em geral se relaciona com a arte.

Diversos setores da sociedade, além da própria classe artística, têm respondido a essas movimentações. Artistas como Caetano Veloso, Dira Paes, Marina Person, Caio Blat, Caco Ciocler, Johnny Massaro e Gregório Duvivier se reuniram na audiência pública no Supremo Tribunal Federal, presidida pela ministra Carmen Lúcia, para protestar contra a suspensão do edital da Ancine. O secretário de Cultura da cidade de São Paulo, Alê Youssef, propôs o festival Verão Sem Censura, para o início de 2020, com todas as peças que foram censuradas pelo país.

Vários artistas se manifestaram por meio de redes sociais contra o tratamento que tem sido dado à questão. “A cultura foi reduzida a um lugar secundário no governo. Queremos uma visão mais generosa do nosso futuro”, declarou o cantor e compositor Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura, no Instagram.

Mauro Munhoz, diretor artístico da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), afirmou: “Em sua longa trajetória, a Flip vem enfrentando desafios de todos os tipos, não apenas os de viabilidade econômica. O que sustenta a festa literária de Paraty é o desejo de seus moradores e visitantes de que ela continue existindo”. Além disso, ele ainda declarou que é importante dizer que mesmo nos períodos de retração na captação, a manifestação cultural promovida pela festa não foi menos importante em seu esforço de promover as artes como elemento fundamental de transformação social.

Ana Lupinacci acredita que o que mais caracteriza a produção artística contemporânea é a capacidade de organizar processos coletivos. Diversos segmentos passam por desafios comuns: custos altos para arcar com despesas operacionais. As afinidades estéticas e políticas têm feito com que grupos não apenas se ajudem dividindo as responsabilidades, mas também, encontrem lugar para uma produção coletiva.

“Hoje eu vejo que as dificuldades de fomento estão em uma situação frágil, mas por outro lado vêm emergindo um pensamento e uma experiência coletiva que são muito fortes. Isso, para mim, é o que está entrando de novo”, diz Ana, usando como exemplo o ateliê que compartilha com outros dois artistas. “Cada um desenvolve seu trabalho, mas nós não nos vemos como concorrentes, pelo contrário. Estamos pensando em entrar em projetos juntos, então, vamos ter que nos reunir e fazer coisas em comum”.

O produtor musical Gui Jesus Toledo, fundador do Selo Risco, fala sobre como percebe essas questões dentro da música independente. “A gente precisa se juntar para fazer acontecer, mas acho que tem uma coisa de trabalhar com o todo. Foi essencial esse passo inicial do coletivo para a gente se colocar na cena.”

Diante do entendimento da relevância da arte na constituição de uma sociedade e de suas relações históricas, surge o questionamento de como se estabelecem as relações artísticas contemporâneas, principalmente quando se vive em um mundo cercado pela tecnologia e conexões virtuais.

De certa forma, essa questão abrange todas as áreas do conhecimento, no entanto, a indústria cultural vem sentindo tais mudanças de forma agressiva. Streamings mudaram completamente nossa relação com o audiovisual; design, que tem uma relação antiga com impressão e materiais analógicos, passa por uma radical mudança nas plataformas, entre outras rupturas que estamos vivendo.

Toledo fala sobre como tais transformações se refletem na produção e no consumo da música. “Hoje em dia uma banda pode gravar em um laptop e subir diretamente no Spotify, sem um intermediário. Mas para alguém chegar nesse nome, tem que passar por muitos filtros em algum lugar, seja na própria timeline, seja um blog de música que acompanha”.

Pensando na quantidade de lançamentos e informação que circulam no ambiente digital, Toledo montou o Selo Risco em 2013,  em diálogo com uma ideia bastante antiga na indústria musical. “Os selos, quando surgiram com a indústria fonográfica, eram muito focados em gênero. Hoje, se a gente discute gênero masculino ou feminino, não deveriam nem existir mais gêneros musicais, não precisamos desses limites cortados e há muito tempo a música é música.”

Ana Lupinacci menciona não apenas a questão da curadoria levantada por Toledo, mas também a participação humana em processos digitais. Para ela, o indivíduo está no centro do processo e é o principal elemento da ação artística. “É preciso repensar os processos de elaborações artísticas por meio da tecnologia.”

Um robô pode ser considerado um artista? A pesquisadora acredita que “o debate da inteligência artificial é muito interessante, mas é muito inicial”. Segundo Ana, o que tem sido visto sobre inteligência artificial é algo como “olha o robô, ‘o computador pintou o quadro’, mas esses quadros já estão sendo pintados pelo homem”, diz. Ainda de acordo com a professora, “a discussão central da arte é o questionamento estético. Estético como sendo parte política e social de uma civilização e de uma cultura”.

Em uma reflexão da arte dentro do processo construtivo de uma sociedade, ela não só se relaciona com o tempo, como também participa da idealização da memória de um povo. Ana Lupinacci reconhece o papel da arte dentro da constituição de uma trajetória social. “Eu acho que a arte gráfica que é esse misto de jornalismo, design, propaganda, tem uma contribuição incrível para dar. Tem um trabalho muito importante, dos mestrados e dos doutorados, que é entrar nesses arquivos e fazer uma arqueologia visual.”

Fernando Chuí ressalta a importância da arte como forma de denúncia. “O que a arte pode fazer para combater essa nova censura é permanecer crítica, resistir viva onde tantos querem estampar uma legenda de seu fim. A arte é impossível de morrer, mas pode sofrer perdas irreparáveis a depender do contexto em que se apresentar. É preciso resiliência e cautela em nossos tempos atuais”, disse.

A crise da arte também pode significar esperança. O saldo político e reflexivo que este período acarreta é apontado pela pesquisadora como um ganho. “Na medida em que a arte vai sendo codificada,  reelaborada pelo tecido social,  os artistas deixam de ser seres estranhos ou pessoas que estão acima do bem e do mal”, afirma Ana Lupinacci.